Por que deveríamos ajudá-los a ganhar dinheiro? Essa é uma pergunta que ecoa em salas de reuniões filantrópicas mundo afora quando se discute a alocação financeira em iniciativas com potencial comercial. Acontece que tais iniciativas possuem a característica de conseguir atrair recursos, especialmente de fontes privadas em busca de oportunidades.
Ao mesmo tempo, a mobilização de capital nunca foi tão crucial para o cumprimento das metas climáticas globais. Há uma lacuna de US$ 7 trilhões ao ano para zerar as emissões líquidas de carbono na atmosfera até 2050. A cifra é impactante – e assustadora –, equivalente a aproximadamente três vezes o PIB brasileiro.
São grandes os desafios para a atração de volumes significativamente maiores de capital privado para a agenda climática. O investimento privado mobilizado por agências multilaterais e governos é menor hoje do que antes do Acordo de Paris, firmado em 2015. Esta trajetória reflete incentivos inadequados, como políticas desfavoráveis, incertezas no mercado de carbono ou soluções ainda incipientes, que inspiram a aversão do mercado financeiro.
A filantropia, ao expandir a atuação e incluir estratégias desenhadas em linha com as forças do mercado, pode ajudar a mobilizar capital privado em escala mais próxima da necessária. Avaliada em quase US$ 2,3 trilhões anuais – ou cerca de 3% do PIB mundial –, a filantropia possui um potencial transformacional no fluxo de capitais, trazendo ainda maiores benefícios sociais, em especial para os grupos mais vulneráveis.
Alcançar esse potencial passa pelo desenvolvimento de programas com rigor de análise e planejamento compatíveis com o funcionamento do mercado, para a promoção de soluções comerciais exitosas.
O Partnerships for Forests (P4F), programa de fomento do governo do Reino Unido que apoia negócios sustentáveis no setor de uso da terra, oferece um bom exemplo. A gestão do pipeline e portfólio do programa é executada por empresas privadas com longa data de atuação na promoção de negócios de impacto e na estruturação de mecanismos financeiros.
Após oito anos de implementação, o P4F alavancou US$ 1,2 bilhão de fontes privadas ao redor do globo. O programa conseguiu reduzir a percepção de risco de investidores por meio de estratégia que combinou assistência técnica com disponibilização de recursos não-reembolsáveis, focado nos principais gargalos dos negócios.
Blended finance
Uma abordagem mais sofisticada de estruturação financeira para os mesmos fins envolve o estabelecimento de plataformas mistas (blended finance), nas quais a mescla de diferentes fontes de capital viabiliza o financiamento de projetos que não existiriam de outro modo.
Essa combinação de capital pode se dar de diferentes formas, ofertando alternativas para distintos perfis de risco e retorno, e reserva um assento especial para a filantropia via recursos não-reembolsáveis ou concessionais, que em última instância reduzem o risco e mobilizam capital de terceiros.
Em um dos muitos desenhos possíveis de blended finance, a filantropia pode prover liquidez ou garantia em instrumentos financeiros, superando uma das barreiras na atração de capital privado. A Octobre, empresa fundada por Sylvain Goupille e apoiada pela Good Energies Foundation, fornece liquidez para investidores institucionais que fazem alocações em fundos de blended finance, o que se assemelha à atuação dos bancos centrais em tempos de crise.
O objetivo é disponibilizar liquidez de último recurso para atores financeiros, reduzindo o risco e catalisando um volume mais alto de capital privado para empreendimentos de impacto.
Em um outro formato, a filantropia poderia ofertar sua agilidade para programas de fomento de agências públicas ou multilaterais, amplamente reconhecidas por sua morosidade.
Investimentos iniciais da filantropia em projetos já selecionados poderiam acelerar drasticamente sua implementação, dado que os trâmites contratuais com as agências podem facilmente ultrapassar 12 meses. O capital inicial da filantropia poderia ser posteriormente recuperado ou agregado ao capital de mitigação de riscos, após o estabelecimento do contrato principal.
Absovendo riscos
A filantropia pode se expor a riscos que seriam inaceitáveis para investidores tradicionais. É natural que o poder público e o setor privado hesitem em realizar aportes volumosos em mecanismos ainda não comprovados.
Recursos não-reembolsáveis da filantropia possuem um papel insubstituível para testar e dimensionar projetos e instrumentos antes de envolver entidades de maior porte para o ganho de escala.
Por exemplo, o desenvolvimento de tecnologias voltadas para solucionar questões climáticas pode consumir tempo e recursos que estão acima do limite de risco do venture capital tradicional. O Instituto Guayí Ventures especializou-se justamente nesse ambiente de risco ao fazer investimentos em conceitos ainda sem comprovação, favorecendo que tecnologias com maior potencial de impacto ambiental positivo encontrem o melhor caminho para a operação comercial.
Por isso tudo – e pela emergência de respondermos à altura o desafio climático –, provocamos a filantropia a incorporar em sua agenda a mobilização de capital privado para promoção de instrumentos financeiros e negócios capazes de gerar impacto positivo sobre o clima e as pessoas.
Essa alocação possui o potencial de geração de fluxo de caixa livre e reinvestimento em perpetuidade e expansão, criando de um ciclo virtuoso. Ao considerar que negócios sustentáveis possuem o potencial de adicionar à economia mundial cerca de US$ 10 trilhões, com a geração de milhões de postos de trabalho, a proposta não fica apenas viável, mas também bastante atraente.
Uma filantropia diferente
Por óbvio, a filantropia precisará de ajustes. Deverá ter envolvimento ativo e de longo prazo com as iniciativas apoiadas, a fim de permitir maturação e aumentar as chances de sucesso.
Será necessário aprimorar seus mecanismos de governança e transparência para evitar que o escasso e valioso capital filantrópico gere riqueza sem justa distribuição de benefícios. Também deverá ter capacidades para arbitrar o equilíbrio entre retorno financeiro e bem-estar socioambiental.
Por fim, precisará adquirir – in house ou por meio de parcerias – expertises mais amplas, e, por vezes, aprofundadas do que aquelas que carregam hoje, para superar os desafios nesta nova vertente.
Por que deveríamos ajudá-los a ganhar dinheiro? Mais adequado seria perguntar: Como acelerar a transição produtiva rumo à descarbonização e promover a mitigação das mudanças climáticas dentro da escala e velocidade necessárias para evitar mais sofrimento?
Essa escala só é possível com o poder público e o setor privado atuando na mesma direção. E a filantropia tem a oportunidade de ser o fio condutor desta transformação.
* Marcio Sztutman é diretor da Palladium no Brasil e do Partnerships for Forests (P4F) na América Latina. Tatiana Botelho é co-fundadora e diretora do Instituto Guayí Ventures.