Há um ano o governo federal decretava estado de emergência no território yanomami, a maior reserva indígena do Brasil. Uma área equivalente ao tamanho de Portugal, onde vivem aproximadamente 30 mil pessoas, vivia uma crise humanitária e ambiental sem precedentes, escondida dos olhos do mundo, no meio da floresta amazônica, em Roraima, região norte do país.
A força-tarefa organizada para expulsar cerca de 40 mil garimpeiros ilegais instalados na região e atuar para melhorar as condições de saúde pública dos indígenas funcionou. Porém apenas temporariamente. Desde o segundo semestre do ano passado, com o arrefecimento da fiscalização, garimpeiros estão voltando à região.
Como vermes, que vão debilitando seu hospedeiro, rastejam pela floresta, desmatando e escavando suas terras. Chegam pelos ares, graças a um forte aparato logístico, composto por aeronaves, pistas de pouso e redes de abastecimento clandestinas.
E, como já se sabe, garimpo mata. Para que a atividade aconteça, árvores vêm abaixo, a água é contaminada, animais e indígenas perdem suas fontes de alimento. Além disso, garimpeiros espalham doenças às quais o povo da floresta não resiste. Sem falar das drogas ilícitas, do abuso do álcool e das violências sexuais que direta e indiretamente arrasam com a população nativa.
Em ano de eleição, mais do que nunca, é preciso lembrar que a democracia, infelizmente, não é uma condição estabelecida, estável ou permanente. Ela precisa ser conquistada todos os dias, a partir da participação ativa da sociedade – nas urnas, nas ruas, em casa e na floresta.
Como pais, professores, cuidadores – sejamos familiares ou profissionais que trabalham com a infância – nosso papel é também o de alertar nossas crianças sobre as fragilidades do país, sejam elas de ordem social, ética ou governamental. E todos os dias, cada um no que estiver ao seu alcance, atuar para que se transformem.
Por tudo isso (e muitas outras razões ligadas à vida humana e do planeta), é necessário continuar familiarizando crianças (e adultos) com a cultura dos povos originários e seu papel na sustentabilidade da vida na floresta e nos centros urbanos do Brasil.
Inúmeros livros nos mostram como vivem sociedades com hábitos de consumo e regime alimentar radicalmente diferentes e, consequentemente, com uma saúde muito diversa da de quem está exposto ao que produz a indústria. Contam como se dá a relação desses povos com a fauna e com a flora e apresentam, ainda, aspectos de sua diversidade religiosa e filosófica.
Abrem nossos olhos para outros idiomas e novas maneiras de se comunicar. Falam-se no Brasil hoje aproximadamente 160 línguas indígenas, além do português. Está nas ruas, à nossa volta, e também nos livros o resultado do encontro deles com o português e com outros de origem africana, jogando luz – e também poesia – no caldo cultural que nos define como brasileiros.
Por isso, as obras de hoje são bi e multilíngues. Um convite para brincar com as palavras e também para levá-las a sério.
Guayarê, o menino da aldeia do rio
Yaguarê Yamã
Editora Biruta, 2019
Guayarê é um garoto de cerca de sete anos que conta para o leitor, em linguagem simples e acessível, como funciona a aldeia indígena do povo Maraguá, onde vive. A obra é dividida em partes, que organizam a narrativa. O ponto central é o Ritual de Passagem, entre as descrições da Infância e do Ser Adulto, quando meninos que têm entre 13 e 15 anos podem deixar de ser criança, conforme a cultura e a tradição local.
Guayarê pontua que, na cidade grande, virar adulto leva bem mais tempo. Uma ótima oportunidade para conhecer a visão dos leitores sobre o que significa tornar-se adulto. O que se ganha? O que se perde? Quais as diferenças dessa passagem em diversas culturas e países?
O pequeno indígena explica ainda como funciona a aldeia, como está composta a família e sua roda de amigos, os bichos de estimação, afazeres e tradições. E fala também sobre sua escola, chamada Santa Maria Yãbetue’y (olha o nome da escola refletindo o caldeirão cultural do Brasil!), onde aprende o idioma de seu povo. No final, há um glossário e ainda mais curiosidades.
Felipe Valério e Luise Weiss
Consultoria: Maria Cristina Troncarelli, Tupã Mirim Werá, Metyktire, Paimu Muapep Trumai Txucarramãe
ÔZé Editora, 2021
Uma poesia trílingue. Parece que não vai dar certo, mas a riqueza sonora, para os que se arriscarem a pronunciar (vale a brincadeira), e o estranhamento gráfico das línguas Guarani Mbya e Mebêngrôke misturadas com o português enriquecem o que salta das e pelas páginas.
A editora explica logo de cara: as línguas expressam conhecimentos, pensamentos e sentimentos. Tudo sobre um pano de fundo cheio de cor, contraste e texturas, produzido pela ilustradora Luise Weiss. Quase tão diverso quanto a própria Amazônia.
Oikoá significa vida na língua dos Guarani Mbya e o livro é todo movimento. Animais, plantas e ciclos da natureza simplesmente vivendo. No final, há uma tabela com as palavras usadas no texto e suas respectivas traduções e ainda duas páginas informativas, que falam sobre línguas, a origem de algumas palavras, um pequeno texto sobre a história e a situação dos povos indígenas no Brasil e um mapa com o que sobrou de suas terras.
Um convite para brincar com palavras e tentar identificar as que foram incorporadas no nosso dia-a-dia. São tantas! Ela também propõe uma conversa interessante sobre o que é vida e como cuidamos dela, na cidade e na floresta, de perto e de longe.
Para dar um mergulho
Quem quiser conhecer um pouco mais ou se aprofundar em literatura indígena, tem na ponta do dedo uma livraria online especializada em literatura indígena produzida no Brasil, com obras para adultos e crianças, de escritores de diferentes povos e regiões do país. Dá uma espiada: https://www.livrariamaraca.com.br/
Ao investir em obras de autores indígenas, você contribui com a divulgação do patrimônio cultural e com o patrimônio financeiro de seus autores, ilustradores e pesquisadores, favorecendo a continuidade da produção das obras.
Para quem é rato de livrarias e sebos
Em 2014, a extinta editora Cosac Naify produziu, em conjunto com a Vídeo nas Aldeias, um projeto de escola de cinema para os povos indígenas, e patrocínio da Petrobras Cultural, a coleção Um dia na Aldeia. São oito livros bilíngues adaptados dos filmes feitos por cineastas indígenas.
Por meio deles, os leitores vão conhecer os costumes antigos e atuais de diversos povos indígenas do Brasil, ao conhecer o cotidiano das crianças da floresta. Os livros mostram como vivem, onde moram, o que comem, que língua falam, do que brincam, lendas e crenças.
O projeto foi coordenado pela autora, ilustradora e atriz Rita Carelli e as adaptações foram feitas por ela e por Ana Carvalho. Com o fim da Cosac, algumas obras entraram no catálogo da Sesi Editora SP que, em 2022, passou a produzir apenas livros didáticos. Alguns exemplares estão disponíveis em sebos online. Vale a busca.
Livro indicado pela coluna ganha prêmio
O livro Os Pombos, de Blandina Franco e José Carlos Lollo, publicado pela Companhia das Letrinhas, recebeu em janeiro de 2024 o Prêmio APCA 2023, da Associação Paulista de Críticos de Arte, na categoria literatura infantil. A obra foi indicada nesta coluna, em novembro.