OPINIÃO

O Brasil não pode perder o voo do SAF

A corrida global para fornecer o combustível que vai descarbonizar a aviação já começou – e o país corre o risco de ser um mero fornecedor de matérias-primas

O Brasil não pode perder o voo do SAF

Triplicar as fontes renováveis de energia até 2030, incluindo os combustíveis de baixo e zero carbono, é uma meta central de descarbonização aprovada na COP28, em Dubai. Nesse contexto, a aviação civil tornou-se prioridade nas agendas climáticas de países desenvolvidos, que estão mobilizando bilhões de dólares em incentivos fiscais, financeiros e regulatórios para construir cadeias produtivas robustas de combustível sustentável de aviação (SAF).

​​Para atingir a meta de net zero em 2050, já está claro que o setor depende de duas estratégias. A primeira é o uso do SAF, que vai responder por cerca de dois terços do corte de emissões. O restante será compensado por meio de créditos de carbono.

O Brasil, um dos líderes globais em bioenergia, com tecnologia, clima favorável e vantagens comparativas únicas, corre o sério risco de ficar restrito ao papel de fornecedor de matérias-primas. Se não agir com rapidez, o país pode mais uma vez repetir o erro histórico de ser exportador de commodities e importador de valor agregado — que, agora, seriam os combustíveis sustentáveis de aviação.

A situação não é hipotética. Ela já está acontecendo. A União Europeia adota mandatos obrigatórios para o uso de SAF, com metas crescentes e suporte robusto para plantas industriais. Países do Sudeste Asiático e do Oriente Médio seguem o mesmo caminho, oferecendo estímulos tributários para a instalação de projetos industriais de refino interno. 

Incentivos fiscais

Nos Estados Unidos o Inflation Reduction Act (IRA) oferecia incentivos até US$ 1,75 por galão de SAF. Com as alterações previstas no pacote One Big Beautiful Bill Act, de Donald Trump, a partir de 2026 esse valor será de no máximo US$ 1 para matérias-primas cultivadas nos Estados Unidos,  Canadá e México. 

A Lei 14.993/2024, denominada Combustível do Futuro, inclui o Programa Nacional de Combustível Sustentável de Aviação (ProBioQAV). Um dos aspectos estratégicos da regulamentação é fomentar um ambiente de negócios que propicie a produção doméstica de SAF. 

Em 2024 foi feita uma chamada pública do BNDES e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) por planos de negócios voltados a SAF e navegação de baixo carbono. Das 76 propostas recebidas, foram selecionadas 25 para um novo combustível de aviação, no valor de R$ 99 bilhões. Os recursos do BNDES e da Finep para esta chamada somam R$ 6 bilhões. 

No entanto, é preciso criar e fortalecer incentivos que viabilizem a indústria produtora de SAF, visando aproveitar a abundância de matéria-prima — cana, soja, milho, macaúba, gorduras, resíduos agrícolas e industriais. 

O Combustível do Futuro e a Conexão SAF, grupo que reúne órgãos públicos, entidades privadas e empresas para identificar e elaborar propostas em áreas como certificação, distribuição, financiamento, tributação e pesquisa e desenvolvimento (P&D), serão extremamente relevantes para ajudar a catalisar uma nova indústria que permita transformar a descarbonização da aviação civil no Brasil e, ainda, exportar SAF para outros países.

Custo Brasil

São medidas de muita relevância, mas a conta para que complexos industriais de SAF se instalem no país ainda não fecha. O Brasil, além de não oferecer incentivos diretos, penaliza o produtor.

As plantas industriais são oneradas na compra de equipamentos, nos impostos incidentes sobre obras de infraestrutura necessárias, no acúmulo de tributos ao longo da cadeia e até na exportação, onde o país não garante, por exemplo, a não-cumulatividade tributária — um princípio básico que impede que o produto chegue ao mercado externo com um peso fiscal inexistente nos concorrentes internacionais.

É importante ter em mente que essa não é apenas uma questão ambiental. É também industrial, econômica e geopolítica. Produzir SAF no Brasil exige criar uma nova cadeia industrial, com empregos de alta qualificação e maior remuneração, estimular mais inovação tecnológica interna e garantir um posicionamento estratégico em um mercado global que não para de crescer.

Além disso, significa assegurar uma fonte de oferta, internamente, mais estável e segura desse biocombustível, evitando que flutuações de preços internacionais impactem negativamente os consumidores e a operação das companhias aéreas.

As soluções existem

Há, sim, soluções sobre a mesa. E nenhuma delas é experimental. São os mesmos modelos que já estão funcionando nos EUA, na Europa e em outros mercados.

O setor privado brasileiro, articulado em diversas frentes, já apresentou propostas concretas e viáveis. Elas incluem a desoneração tributária na construção das plantas — isenção temporária de tributos indiretos federais e estaduais sobre máquinas, equipamentos e materiais de construção; a criação de um regime aduaneiro especial que elimine tributos na importação de equipamentos vinculados à produção de SAF (podendo, inclusive, considerar experiências como as ZPEs); a extensão dos benefícios do Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura para projetos de SAF; além de garantir a não-incidência de carga tributária acumulada sobre exportações.

O país também precisa continuar construindo um ambiente regulatório que ofereça previsibilidade e segurança jurídica, desenvolver os aspectos de certificação e qualidade do produto, estimular P&D, além de criar linhas de financiamento de longo prazo, com taxas competitivas e mecanismos efetivos de garantia para atrair os bilhões de reais necessários à construção de biorrefinarias em escala.

Soma-se a isso uma árdua agenda internacional, ligada à suposta competição entre produção de biocombustíveis e de alimentos, argumento usado por alguns países.

Trata-se de uma narrativa carregada de desinformações, que exige uma atuação cada vez mais proativa dos negociadores brasileiros.

Políticas públicas

O papel governamental para o desenvolvimento dessa indústria não é uma demanda isolada do Brasil. Ele é destacado por organizações internacionais como a Associação Internacional de Transportes Aéreos (IATA) e a Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO).

Atualmente, a produção de SAF responde por apenas 0,2% do consumo de combustíveis de aviação, e serão necessários cerca de US$ 179 bilhões anuais para atender à demanda global até 2050.

Essa escolha não é técnica. O Brasil tem tecnologia, tem matéria-prima, tem expertise, tem casos de sucesso e conta com uma indústria agrícola e energética que é modelo para o mundo. As economias mais relevantes do planeta criaram mandatos com metas claras para a mistura de SAF, o que gerará uma demanda global crescente.

A escolha é política, econômica e estratégica: queremos ser protagonistas da bioeconomia global ou aceitaremos, mais uma vez, vender commodities e comprar produtos industriais de maior valor agregado?

O Brasil é uma potência ambiental e energética, mas manter essa posição exige políticas públicas consistentes. Exportar matéria prima de baixo carbono para que EUA, Europa, Oriente Médio e Sudeste Asiático a industrializem e capturem os empregos, a inovação e os ganhos da nova economia verde não é estratégico.

As grandes economias já fizeram sua escolha e estão acelerando o apoio público para garantir que parte do valor fique dentro de suas fronteiras. O Brasil precisa se mover rapidamente para não perder esse voo da história.

* Rodrigo C. A. Lima é sócio-diretor da consultoria Agroícone

Fabrizio Panzini é diretor de políticas públicas da Amcham Brasil