COLUNA - ESG VEM DE BERÇO

Estações apresenta a impermanência como o 'velho normal'

Livro resgata o ciclo do tempo e da vida e nos apresenta a pergunta: por que esticamos o imediato e fugimos do futuro?

Capa do livro 'Estações'
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Estamos assistindo, calados, à corrupção do tempo.

Calados porque assustados, calados porque ocupados demais com o resto, calados porque sem esperança, calados porque “não cabe a mim”, simplesmente calados.

As mudanças climáticas avançam numa velocidade alucinante, sempre em aceleração. Rápido demais para nos deixar perceber todos os detalhes que atropela. Em São Paulo, nos acostumamos aos agostos de 30 graus. Na França, às flores que brotam sem freios nem vergonha no começo de março.

Em alguns (poucos) lugares temos planos de emergência complexos para inundações e tornados – mas não há reciclagem de lixo nem projeto ou incentivo para a substituição de energia de fontes fósseis. Investimos no imediato, abandonamos o futuro. Apostamos na distração, nos afastamos da salvação.

Sequestramos o tempo da natureza, que vai perdendo sua identidade, sua voz, seu caminho. O natural vira história. Que, por sorte, ainda encontra seu lugar nas páginas dos livros.

Estações, de Daniel Munduruku e Marilda Castanha, publicado este ano pela Editora Moderna, procura resgatar o que já está ficando com cara de antigamente. Não é coincidência que essa narrativa venha de um autor indígena, nascido no Pará, que viveu desde pequeno o contraste entre a sabedoria da natureza, de seus antepassados e da escola, que foi obrigado a frequentar durante a ditadura militar.

A dupla conta, de maneira simples, que a natureza tem o seu tempo e o seu ritmo. Como as estações. Como a vida dos animais, das plantas e do ser humano. Lembra que a conexão entre todos é visceral. Impossível romper com a interdependência.

A obra, de tão literal, torna-se imensamente poética.

Em paralelo ao passo firme e contínuo da natureza, onde cada elemento tem o seu lugar e o seu papel, o livro relembra que a vida das pessoas também tem seu fluxo. Cada etapa é comparada a uma estação do ano. Elas não podem ser substituídas, antecipadas ou prolongadas.

Abre-se aqui um mundo de reflexões. O que andamos fazendo e inventando para subverter o tempo? Procedimentos estéticos rejuvenescedores, inserção dos eletrônicos na vida das crianças, acúmulo de atividades acadêmicas, preocupação exagerada com a performance de quem precisa brincar, superproteção e falta de incentivo à autonomia… o céu é o limite.

Será que esse apego ao imediatismo vem de um enorme medo do futuro? Se invertêssemos a lógica e criássemos um futuro saudável para todos, onde não houvesse espaço para o descartável, poderíamos caminhar em direção a ele com mais tranquilidade?

Há um mundo de recursos modernos que fomos desenvolvendo justamente para controlar as etapas, em vez de deixá-las acontecer e fazer o melhor possível, no tempo delas. Fica o convite para uma avaliação individual, familiar e cultural. É comum que essas “coisas” passem ao largo da consciência.

Para amarrar tantas discussões potentes que essa obra sugere, os autores colocam sobre a mesa um tema muitas vezes espinhoso, mas que interessa demais às crianças: a finitude. Trata-se não apenas da morte (ainda que também e é muito importante falar dela), mas da impermanência, do encerramento de ciclos, do fim de uma etapa, da chegada do inverno, do que termina e do que vem em seguida. Por que não do luto também?

As estações do tempo e da vida caminham juntas. Se perdemos uma, que sempre foi referência, o que guiará a outra? Se não sabemos mais quando plantar, quando colher, como matar a fome? Sem o ciclo das águas, como matar a sede e não morrer de calor?

Ressalta-se aqui um dos mais importantes valores da cultura indígena: a circularidade. Que vai diretamente ao encontro do ser criança. Criança gosta de repetir. Por meio da repetição, se sente segura e se sente capaz. Conta essa história para ela, muitas vezes.

Sobre os autores

Daniel Munduruku

Graduado em filosofia, com licenciatura em história e psicologia, mestrado e doutorado em educação e pós-doutorado em linguística, foi educador social de rua pela Pastoral do Menor de São Paulo. Reuniu sua experiência acadêmica e sua história pessoal e publicou 65 livros, premiados no Brasil e no exterior. Ativista do Movimento Indígena Brasileiro, é diretor-presidente do Instituto Uka e do selo Uka Editorial.

Marilda Castanha

Autora da história ilustrada que acompanha as palavras de Munduruku, nasceu em Belo Horizonte e cresceu no quintal, com bichos e plantas. Estudou Belas Artes e também é muito premiada no Brasil e no mundo.