Os casos de litigância climática que envolvem indenização por perdas e danos ainda são poucos e difíceis de categorizar. Isso se deve, em parte, à falta de uma definição única sobre o que são perdas e danos climáticos, tema que pode ter significados e tratamentos diferentes em cada contexto e jurisdição.
Há necessidade urgente de uma estrutura para entender e abordar a questão em suas diversas camadas. Mas isso não tem impedido os litigantes de buscar o Judiciário para obter indenização pelas perdas e danos sofridos em decorrência dos impactos da mudança do clima.
No âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e do Acordo de Paris, perdas e danos climáticos são essencialmente uma questão entre Norte e Sul Global: em resumo, os países em desenvolvimento pedem recursos para enfrentar um problema que eles não causaram.
Já na experiência dos litígios climáticos nem sempre nos deparamos com esse componente de responsabilidade histórica dos países. Isso acontece em casos como o movido pela população da ilha indonésia de Pari, que processou a fabricante de cimentos Holcim em seu país-sede, a Suíça.
O aumento do nível do oceano levou a uma maior frequência de inundações e danos a casas, ruas e empresas locais, levando inclusive ao risco de que grande parte da ilha fique submersa nas próximas décadas.
Os autores da ação argumentam que a Holcim tem responsabilidade por esses efeitos climáticos, dadas as suas emissões históricas de gases de efeito estufa. Pesquisa do Climate Accountability Institute concluiu que o grupo emitiu mais de 7 bilhões de toneladas de CO2 entre 1950 e 2021 e contribuiu com cerca de 0,42% de todas as emissões industriais globais históricas, o que a classifica com o 47º lugar entre os 100 maiores emissores.
A responsabilidade privada
Mas há em grande parte uma dimensão doméstica de perdas e danos climáticos, relacionada ou a falhas de governos nacionais na adoção de políticas de adaptação e de prevenção de danos climáticos; ou a responsabilidade civil e danos privados causados por indivíduos e empresas.
E existem nuances. Em alguns casos, a reivindicação é por perdas e danos já ocorridos, incluindo perdas não-econômicas relacionadas ao patrimônio cultural, ecossistemas e biodiversidade, e perda de vidas.
Em outros, trata-se de prevenção de danos futuros, ou eventos de início lento, que estão ocorrendo e continuarão a ocorrer; ou então danos que são desdobramentos de eventos já em curso.
Um exemplo desta última situação é o caso “Municípios de Porto Rico v. Exxon Mobil Corp”. Nesta ação, pleiteia-se que a gigante americana e outras empresas de combustíveis fósseis paguem indenização pelas perdas sofridas por cidades porto-riquenhas como resultado de tempestades durante a temporada de furacões de 2017, e as perdas econômicas que vêm ocorrendo continuamente em decorrência disso.
Neste caso, merece destaque o argumento de que tais empresas conspiraram, cometeram fraude contra consumidores e práticas comerciais enganosas, inclusive violando a lei americana conhecida como RICO, muito utilizada em ações movidas contra organizações criminosas.
A realidade brasileira
No Brasil, a litigância de perdas e danos climáticos tem se moldado a partir de casos movidos pelo Ministério Público Federal em relação a situações de desmatamento.
Proprietários rurais são processados e chamados a pagar a devida compensação pelas perdas ecológicas causadas em decorrência do desmatamento. Nesses casos, o Ministério Público justifica que, para além do dano ecológico da perda da floresta em si, há um dano especificamente atrelado ao fato das emissões de carbono provocadas pelo desmatamento, um dano causado pela piora da qualidade do sistema climático global.
Nesse contexto, o Conselho Nacional de Justiça realizou recentemente consulta pública e audiência para ouvir especialistas sobre parâmetros adequados à quantificação do impacto do dano ambiental na mudança climática global.
Dentre as alternativas de quantificação do dano climático, considerou-se a utilização de preços de carbono de mercado, incluindo a possibilidade de uso de índices do mercado voluntário de carbono ou dos mercados regulados, como o da União Europeia.
No livro “Dano Climático: Conceito, Pressupostos e Responsabilização”, a juíza federal Rafaela Rosa ajuda a destrinchar esses conceitos, ainda pouco elaborados mesmo na literatura internacional.
Ela explica que, conforme previsto inclusive na própria UNFCCC, o “sistema climático” é um bem global, planetário e integrado, que não pode ser fragmentado. As emissões de gases de efeito estufa, ainda que sejam resultado de uma ação local, afetam este bem global, que também é protegido pela legislação brasileira: “O dano climático é, portanto, evidentemente um dano de ordem planetária”, diz a autora.
Ainda que haja muitos desafios de compreensão e classificação desses casos de perdas e danos climáticos, inclusive a necessidade de melhorar o entendimento de membros do Judiciário sobre o tema e sobre a ciência relacionada, dados mostram que o número de ações judiciais com esta abordagem vem crescendo.
O famoso relatório anual de tendências de litigância climática do Grantham Research Institute reforça essa perspectiva, notando que casos de responsabilidade corporativa pelos danos causados por produtos em decorrência de mudanças climáticas ganharam força nos últimos anos, com cerca de 60 processos movidos globalmente contra as chamadas “carbon majors”, ou as companhias responsáveis por grandes volumes de emissões.
Um relatório recente do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) sobre litigância climática aponta uma série de tendências relacionadas a perdas e danos climáticos.
Elas incluem migrações e deslocamentos internos por motivos de mudanças do clima; casos “pré e pós-desastres climáticos”, por falta de planejamento e gerenciamento das consequências de eventos extremos por parte de governos; a chamada “ciência da atribuição climática” para atribuir responsabilidade pelas contribuições de atores privados para a mudança climática; casos sobre responsabilidades de países por impactos que vão além de suas fronteiras; e casos que tratam dos impactos da mudança climática sobre comunidades indígenas e povos tradicionais.
A verdade é que a litigância de perdas e danos climáticos é uma tendência inevitável em um mundo cada vez mais impactado pelas mudanças climáticas e pela inércia de governos e atores privados.