Por que está todo mundo falando de agricultura regenerativa (até um surfista) 

Não existe uma definição universal nem uma receita, mas o objetivo é claro: recuperar a saúde do solo e dos ecossistemas e respeitar a natureza. Os gigantes do agro estão aderindo – e lucrando 

Por que está todo mundo falando de agricultura regenerativa (até um surfista) 
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O termo tem sido tão usado que parece que todo mundo com alguma relação com o campo aderiu à agricultura regenerativa. A lista tem grandes tradings multinacionais, pequenos produtores, e até mesmo surfistas de grandes ondas.

O que é esse novo jeito de produzir no campo, que alguns acreditam ser uma revolução comparável à que deu origem à agroindústria?

A resposta certa, apesar de frustrante, é “depende do caso”.

Com o risco de greenwashing sempre presente, é importante separar o joio do trigo. A agricultura regenerativa não tem uma cartilha única ou uma receita que possa ser replicada em várias propriedades, como uma certificação orgânica. 

Cada produtor escolhe um caminho, mas todos querem chegar ao mesmo destino: um solo e um ecossistema saudáveis – regenerados. 

Não se trata de uma ideia nova ou revolucionária. Durante a maior parte da história o ser humano produziu alimentos de acordo com os limites da natureza. Alguns, comos povos originários, fazem isso até hoje. 

“É um clique quando o agricultor se dá conta de que passou boa parte da vida lutando contra a natureza, e aí descobre que ela pode ser sua parceira”, diz Eduardo Martins, presidente do Grupo Associado de Agricultura Sustentável (Gaas), associação com uma rede de 3 mil agricultores, agrônomos e consultores que praticam e promovem a agricultura regenerativa há pelo menos 10 anos. 

De certa forma, a ideia vai de encontro ao modelo industrial que domina a produção de soja, milho e carne no Brasil, para mencionar só três commodities. 

Mas a novidade é que as práticas começam a ser adotadas também nessa escala enorme – e com resultados na produtividade e no balanço. 

A onda é movida em parte pela percepção – tardia, segundo os críticos – de que o modelo atual não se sustenta. A terra não é fértil para sempre. A mitigação das mudanças climáticas é outro incentivo, pois muitas das técnicas têm o potencial de reduzir as emissões da agricultura, de longe a atividade econômica brasileira que mais lança gases de efeito estufa na atmosfera.

O site AgFunderNews fez um levantamento das grandes empresas que assumiram compromissos públicos com a agricultura regenerativa. Nela estão muitas das maiores corporações agroalimentares do mundo: ADM, Anheuser-Busch InBev, Bunge, Cargill, Coca Cola, Danone, Heineken, JBS, Kellogg, Nestlé, Pepsi, Unilever, Walmart. 

E é verdade que um surfista investe em agricultura regenerativa, não falamos dele só para chamar a atenção. 

O português Francisco Roque de Pinho, surfista de grandes ondas e ex-banqueiro da Rothschild, uma das maiores dinastias bancárias europeias, passou os últimos anos entre as ondas de Nazaré (Portugal), consideradas as maiores do mundo, e a América do Sul, onde adquire e restaura terras agrícolas usando técnicas sustentáveis. 

“A agricultura regenerativa normalmente leva a menores custos de produção, maiores rendimentos, maiores preços de mercado e fluxos de receita adicionais, como créditos de carbono”, disse Pinho em entrevista à TNW, site do Financial Times. “É uma proposta atraente para investidores.”  

O Reset falou com uma dezena de pessoas, entre produtores, institutos, investidores, pesquisadores e consultores, para entender esse mercado crescente no Brasil e no mundo. Entre entrevistas e (muitos) estudos, organizamos o que encontramos em cinco tópicos: 

  1. Uma tentativa de definir a agricultura regenerativa

O termo é usado em discussões sobre a transformação do sistema alimentar. Por não ter nenhuma definição formal, há diferenças de perspectivas entre seus praticantes e defensores. Algo como o net zero, quando se fala de metas climáticas.

Até mesmo um artigo acadêmico foi publicado recentemente fazendo uma revisão das muitas definições e abordagens que aparecem na literatura.

O paper conclui que a agricultura regenerativa  pode ser  entendida como os princípios, práticas e resultados voltados para melhorar a saúde do solo, a biodiversidade, a resiliência climática da produção e a função do ecossistema., 

“A agricultura regenerativa não se preocupa apenas em criar sistemas agrícolas que ‘causem menos danos’ ou que sejam meramente ‘sustentáveis’, mas sim que ‘restaurem’ ou ‘regenerem’ de alguma forma funções ecológicas naturais”, resume documento da Table, plataforma colaborativa entre universidades (entre elas a inglesa Oxford e a colombiana Universidad de los Andes) sobre cadeias alimentares. 

As definições se dividem basicamente em dois grupos:

(1) os que dão ênfase para um conjunto particular de práticas;

e (2) aqueles que se concentram em seus resultados desejados ou prometidos. 

Eles estão interconectados, mas têm uma diferença marcante de abordagem: enquanto o primeiro entende que o selo “agricultura regenerativa” possa ser usado apenas com a adoção das práticas, o segundo defende que ele só tem valor quando há resultados.

As práticas tidas como “regenerativas” variam a depender dos objetivos e do clima em que a produção está inserida. Mas elas quase sempre combinam as metas e suas respectivas práticas.

Um dos primeiros pontos é limitar a perturbação do solo. Isso inclui usar insumos químicos demais e revolver a terra antes do plantio. Isso afeta diretamente os microrganismos que vivem no solo e são um dos principais indicadores da saúde do lugar.

A solução é adotar o plantio direto (algo que os agricultores brasileiros já fazem há muitos anos) e ser mais preciso na aplicação de químicos.

Outro exemplo é a substituição de monoculturas por uma sistema mais diverso, que pode incluir também a integração de florestas (os chamados sistemas agroflorestais) e lavoura e pecuária.     

Hoje a ênfase ainda é no “como fazer”. “Os protocolos estão voltados às práticas, se baseiam no esforço, não nos resultados”, diz Charton Locks, diretor operacional da Produzindo Certo, uma agtech que junto com Bayer, BRF e Agrivalle criou um protocolo de agricultura regenerativa para o cultivo de soja. O plano é pagar um prêmio aos produtores que adotá-las.  

O foco nas práticas tem uma explicação:  a lista de métricas é bastante aberta, e não existe um único número que resuma tudo.

No geral, medem-se níveis de carbono do solo e emissões de gases de efeito estufa; números e variedade de invertebrados; drenagem do solo; compactação do solo; penetração de umidade; profundidade do solo; nutrientes do solo; proporções entre  fungos e bactérias; existência de polinizadores e uso de pesticidas.

“É preciso ver incremento de indicadores como uso da água, biodiversidade, carbono e questões sociais”, diz Marcelo Marzola, consultor em agricultura regenerativa. “Temos que transicionar para resultados.”

  1. O que há de errado com o modelo atual de agricultura?

A agropecuária tem uma pegada ambiental e climática significativa.  Somada ao desmatamento (muitas vezes para abrir novas áreas de produção), ela respondem por quase 80% das emissões.  

Ao mesmo tempo, a previsão é que a necessidade global de alimentos cresça, como consequência do aumento da população e da demanda per capita por alimento, com a expansão da classe média. A ONU estima que chegaremos a 10 bilhões de pessoas até 2050. 

“Precisamos produzir comida de uma forma mais sustentável, garantindo produtividade para que a gente consiga alimentar essa população crescente”, diz Tiago Gomes, sócio da Fama Re.capital.

A gestora tem um fundo de turnaround climático, que investe em ‘ofensores’ do clima com o objetivo de influenciar seus planos de descarbonização. A primeira empresa do portfólio foi a gigante do agro SLC Agrícola.

Uma ideia presente em tudo o que tem a ver com a agricultura regenerativa é o foco na natureza. “Voltamos a enxergar mais potencial na biologia do sistema agronômico, aspecto que ficou de fora da última revolução na agricultura, que privilegiou a química”, diz Luis Barbieri, sócio-fundador da granja Raiar Orgânicos e idealizador da Folio, instituto recém-criado com o objetivo acelerar a transição para uma nova agricultura. 

  1. Agricultura regenerativa pode conviver com o atual sistema de produção?

Há quem aposte que a agricultura regenerativa vai substituir o modelo intensivo, importado dos países do Norte Global a partir da década de 1960. 

Momento histórico conhecido (ironicamente) como Revolução Verde, ele possibilitou um aumento da produtividade agrícola em um período de grande crescimento populacional no mundo.

Mas a natureza já dá sinais de esgotamento, o que tem impacto na produtividade e no resultado financeiro. O fato de que muitos insumos e tecnologia são importados também entra nessa conta. 

Um dos chamarizes das práticas regenerativas é a economia. 

Fertilizantes podem chegar a representar até um terço do custo operacional de algumas culturas, casos da soja e do milho. O mais usado é o químico solúvel NPK (nitrogênio, fósforo e potássio). O país produz só 5% do que consome desses adubos, o resto é importado.

Alguns produtores estão usando uma alternativa natural, chamados de pó de rocha ou  remineralizadores, que custam menos, substituem os químicos e ajudam a tirar o carbono da atmosfera.. 

Pelerson Dalla Vecchia, CEO do Grupo Roncador, está trocando o NPK por pó de rocha em suas plantações e buscado alternativas para outros insumos. “Entramos com os dois pés em defensivos biológicos. Se precisar, aplicamos o químico, mas agora na medida da necessidade. Não temos mais aplicações massivas de defensivos”, conta.

  1. Quais são os resultados encontrados até agora?

Além de baixar os custos, há relatos de aumento da produtividade. Isso porque as quebras de safra causadas por condições climáticas extremas têm sido menores em cultivos que usam práticas de agricultura regenerativa. 

Gigante do agro, a SLC Agrícola começou a colher resultados das técnicas de agricultura regenerativa e tem planos agressivos de expansão. A companhia, que faturou R$ 7 bilhões em 2023, começou a testar algumas das práticas em 2021 em duas fazendas. O resultado é que na última safra de soja ela registrou uma colheita de entre 25 a 30 sacas a mais por hectare, em comparação com as outras fazendas do grupo. 

Esse panorama também é visto no exterior. Uma lucratividade entre 70% e 120% maior e um retorno sobre o investimento de 15% a 25% ao longo de 10 anos foram os achados de um estudo com 100 agricultores americanos sobre a transição da agricultura convencional para a incorporação de práticas mais regenerativas em escala. O levantamento foi feito pela Boston Consulting Group (BCG) e pela coalizão One Planet Business for Biodiversity (OP2B), do World Business Council for Sustainable Development (WBCSD).

Outro resultado relevante é a resiliência a mudanças climáticas. Diante de uma das maiores secas já vistas no Brasil, a falta de chuva tem castigado os produtores. O presidente da Gaas conta que em lugares como o Sudoeste goiano há registro de 60 dias de chuvas durante o ciclo de plantação de soja.  

“O ciclo da soja dura entre 100 e 120 dias. Imagina faltar a chuva na metade do ciclo? Estamos vendo os produtores [que adotam práticas regenerativas] conseguindo manter a produtividade”, diz. “Quando você compara isso com um plantio convencional, com 20 dias sem chuva, ele já despenca de 70 para 50 sacas por hectare.”

  1. O que ainda falta para a maior adoção? 

Assim como os potenciais, os desafios são muitos: faltam investimento e financiamento direcionados e conhecimento por quem está na ponta, os produtores e agrônomos. 

O estudo do BCG mostra que durante a transição da agricultura convencional para a regenerativa, o que leva em média de três a cinco anos, os agricultores podem esperar uma perda de lucratividade de até US$ 40 por acre até que o sistema esteja maduro. 

O relatório aponta que, no contexto americano, o risco financeiro de curto prazo para os agricultores em transição pode ser mitigado por programas de compartilhamento de custos, melhores termos de seguro, subsídios governamentais, prêmios de preço, programas de empréstimos e mercados de serviços ecossistêmicos.

“Tanto as empresas quanto os governos precisam se esforçar para diminuir o fardo sobre os agricultores e acelerar a transição para práticas agrícolas mais sustentáveis”, diz Sonya Hoo, diretora e sócia da BCG.

No contexto brasileiro, a avaliação é de que o país tem uma regulamentação adequada para dar segurança jurídica para os produtores de agricultura regenerativa, com legislação sobre sementes, remineralizadores e pagamento por serviços ambientais. A única que falta é a de bioinsumos, que tem propostas de projeto de lei em tramitação no Congresso. 

A falta de uma taxonomia que defina o conceito pode ser um entrave para a criação de políticas de fomento. “Precisamos ter diretrizes claras e únicas que direcionem práticas, financiamento, tanto público quanto privado, os produtores rurais que querem adotar as prática, as indústrias que querem se posicionar”, diz Barbieri, da Folio. 

*Foto: One Tree Planted