Ailana Reis, 37, casada e com dois filhos, mora há 11 anos no assentamento Nova Vitória na zona rural de Ilhéus (BA), uma agrovila com 36 residências que se sustenta com o cultivo de banana, hortaliças e, principalmente, da cabruca, como é conhecido o método de plantar cacau à sombra de um pedaço preservado da Mata Atlântica.
“Há algum tempo separamos uma área de cabruca para recuperar e torná-la produtiva, mas não conseguíamos recurso”, afirma ela.
Assentados dessa região do sul da Bahia têm enorme dificuldade para obter financiamento. Para alguns, faltam documentos essenciais. Outros pequenos agricultores acumulam dívidas de safras passadas ou são analfabetos funcionais.
Todos são excluídos de acessar qualquer recurso de crédito, mesmo do popular Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar).
A realidade desses agricultores mudou com os recursos do primeiro Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA) sustentável, lançado em dezembro de 2020. Desenhada pela ONG Tabôa Fortalecimento Comunitário, a operação foi feita em conjunto com o a securitizadora Gaia e os institutos Arapyaú, do empresário Guilherme Leal, e Humanize, voltados à sustentabilidade e equidade social.
Os recursos, da ordem de R$ 1,37 milhão, foram repassados a 184 agricultores, que receberam R$ 7 mil, em média. Entre os beneficiados está Ailana Reis (foto), que implementou seu almejado sistema agroflorestal, combinando plantação com proteção da floresta.
Com o dinheiro, a produtividade de cacau no sistema cabruca cultivado pela agricultora cresceu 162% no ano passado, e a renda quase triplicou. A família dela é uma das que viram a renda mensal sair de menos de um salário mínimo para chegar a cerca de R$ 2 mil.
Neste ano, os resultados deram um novo salto. “Minha produção era de 17 arrobas de cacau [255 kg] anuais por hectare e agora está em quase 76. Minha previsão é que eu chegue no ano que vem a 100 arrobas”, diz a agricultora.
Roberto Vilela, diretor-executivo da Tabôa, afirma que um terço do crédito foi acessado por mulheres e mais de 75% foram concedidos a assentados. “A renda média anual aumentou 38,9% em apenas um ano”, diz Vilela.
O recurso rendeu frutos que vão muito além do cacau.
Cada hectare de mata preservada no sistema agroflorestal é capaz de estocar, em média, 66 toneladas de carbono, além de conservar a biodiversidade e a oferta de água.
Além disso, em fevereiro deste ano, Ailana Reis foi eleita presidente do assentamento, a primeira mulher a ocupar essa posição nos 22 anos da comunidade.
“Na zona rural, a mulher ainda é muito vinculada ao marido. Mas fiz tudo e muito mais que um homem consegue fazer. Trabalhei na roça, no cabo de enxada e no facão, criei meus filhos, estudei e me formei. Fiz técnico em agropecuária e ciências biológicas”.
“Meus planos agora são recuperar uma área com pés de cacau com mais de 100 anos e apresentar o microcrédito para um assentamento próximo, também liderado por uma mulher”, finaliza a agora líder política do assentamento.
Inadimplência quase zero
O CRA cumpriu a missão de “comprovar a viabilidade desse mecanismo de crédito, assim como sua capacidade de escala”, diz Vilela. “É uma emissão pequena para o mercado, mas nos permitiu triplicar a nossa carteira.”
O CRA foi executado num modelo misto. Um fundo filantrópico cobriu o risco de crédito, o que ajudou a atrair investidores que procuravam agregar impacto à sua carteira em um investimento simples.
A Tabôa atua na ponta: faz a análise de crédito e gera os boletos. Os institutos Arapyaú e Humanize apoiam a operação com recursos filantrópicos, assumindo cobrir a inadimplência até o limite de 28,5%. “Felizmente, nossa taxa de inadimplência foi surpreendente, de apenas 0,48%”, afirma.
Para os organizadores, a inadimplência quase zero é resultado do desenho de concessão de crédito baseado na confiança e no acompanhamento técnico.
“Os agricultores criaram grupos formados por afinidade em que todos são mutuamente avalistas e recebem um único boleto. Desta forma o grupo se apoia e se acompanha para que todos possam contribuir. Isso diminui muito o custo de cobrança”, afirma Vilela que também é especialista em microcrédito.
O acompanhamento técnico foi fundamental principalmente para a conversão de culturas de cacau comum para cacau de qualidade, destinado à produção de barras de chocolate bean to bar, feitas com o chamado cacau de qualidade, cultivado em floresta conservada e com insumos orgânicos.
“Quem usou o recurso para converter a produção em cacau de qualidade teve um aumento de renda de 58,6%”, afirma Vilela. “E quem seguiu no cacau comum agora não está mais na loucura de colher e vender as amêndoas para pagar as contas. É possível fazer um estoque e esperar um preço melhor”, diz Ailana Reis.
Na região do sul da Bahia, o cacau commodity é comprado principalmente pelas empresas Olam (Cingapura), Barry Callebaut (Bélgica e Suíça) e Cargill (EUA) que pagaram cerca de R$ 10 por kg de amêndoa pela cotação média da última semana de maio. Essa produção tipicamente é vendida para a grande indústria.
Já as produtoras de barra bean to bar pagam mais que o dobro pelo cacau de qualidade. As principais compradoras da região são as brasileiras Dengo, Amma e Kalapa.
Outra história
Thais Ferraz, diretora-executiva do Instituto Arapyaú, lembra que a região de Ilhéus povoa o imaginário cultural brasileiro. “A literatura de Jorge Amado retrata uma região com mata exuberante, praias lindas, onde o ciclo do cacau, no século passado, atraiu uma riqueza enorme, mas sempre concentrada”.
Mas um dia o cacau acabou, varrido pela vassoura de bruxa, fungo que dizimou as plantações baianas nos anos 90. A participação do Brasil na produção da commodity caiu de 15% para menos de 4% naqueles anos. As fazendas foram abandonadas e os indicadores sociais e econômicos da região (que já não eram dos melhores) só pioraram.
“Por muito tempo, as instituições financeiras assumiram que o cacau ali não se pagava. Os resultados desse CRA são emblemáticos para reverter essa suposição”, afirma Roberto Vilela, diretor-executivo da Tabôa.
Segundo Ferraz, o renascimento dos pés de cacau agora ocorre em paralelo a um novo modelo de desenvolvimento. “O Brasil hoje está no ranking de países produtores de cacau de qualidade para barras bean to bar da International Cocoa Organization (ICCO). É um cacau que conta uma história diferente, com uma riqueza que está sendo distribuída e que ainda promove conservação ambiental”.
(Crédito da foto: Ana Lee/ Divulgação)