Adeus, relatórios de sustentabilidade vazios

Processo movido pela SEC contra a Vale mostra que as divulgações das empresas serão cada vez mais examinadas sob um microscópio

Distintivo de xerife da polícia americana
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Foi-se o tempo em que as questões ambientais, climáticas e sociais eram temas alheios aos negócios ou, quando muito, eram tratados exclusivamente no viés de eficiência operacional. Concordemos ou não, gostemos ou não, o mundo está em transição para a economia de baixo carbono, circular e bioeconomia. 

Esse novo contexto levou à explosão da divulgação de dados ESG ao mercado, via posicionamentos de negócios e/ou produtos e compromissos voluntários. Em tese, tais posicionamentos e compromissos  são divulgados partindo da premissa de que a base regulada coberta pelo E (capital natural e externalidades negativas) e pelo S (direitos humanos, normas trabalhistas e de saúde e segurança, direito do consumidor, proteção de dados, direito de vizinhança) está em conformidade com o arcabouço normativo em vigor; ou seja, os posicionamentos e os compromissos  demonstram conduta corporativa proativa que  excede a regra aplicável.

Entretanto, a integridade dos dados ESG divulgados ao mercado vem sendo colocada em xeque, com razão. Greenwashing, socialwashing e até rainbowashing (em alusão aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) são termos de uso corriqueiro. Em ambiente regulado ou voluntário, a divulgação de dados fora das demonstrações financeiras deveria ser um exercício de transparência, coerência, ética e respeito ao mercado – mas, com alguma frequência, acaba sendo o oposto disso.

Dados ambientais, climáticos e sociais devem ser divulgados para propiciar a tomada de decisão informada sobre alocação de capital, seja por uma ação simples de consumo, seja por uma operação complexa de equity. A teoria é ótima, mas na prática a coisa complica.

Quem define o que, quando, como e onde o rótulo ESG pode ser atribuído a um negócio, produto ou serviço?

Vamos dar um passo para trás: toda a base regulada do E, do S e do G, na sua essência, está sujeita à supervisão pelos órgãos competentes (sistema de comando e controle). Porém a atribuição do rótulo ESG a condutas corporativas, serviços e produtos (de consumo ou financeiros) não está sujeita a regulação, ao menos ainda.

É nesse ponto que a conversa fica interessante. A ânsia por qualificar negócios, serviços e produtos como ESG, sem diretriz regulatória ou supervisão, fez com que dados incoerentes, inexatos e carecedores de veracidade fossem divulgados ao mercado.

Acostumados ao business as usual, players relevantes de diferentes segmentos de mercado não atentaram para uma lição de casa básica: assegurar que, quaisquer que fossem os dados, eles ao menos guardassem coerência entre si, isto é, passariam na prova ao serem avaliados conjuntamente.

Comunicados ao mercado, fatos relevantes, apresentações a investidores, declarações e compromissos ESG, processos administrativos e/ou judiciais, inquéritos civis ou penais tratando de tema E, S ou G relevante ao negócio, relatórios de sustentabilidade, demonstrações financeiras e quaisquer outros dados públicos. É disso que estamos falando.

Dados ESG que refletem verdadeiramente o negócio ou produtos e serviços que incorporam de fato as diretrizes ESG necessariamente devem estar refletidos de forma íntegra, harmônica e coerente no universo de dados disponibilizados ao mercado.

As placas tectônicas se movem

Se o business as usual qualificava como ingenuidade ou irrelevantes os apontamentos dos profissionais que há pelo menos duas décadas insistiam na relevância da integridade ambiental, climática e social dos negócios e produtos e, consequentemente, dos respectivos dados divulgados ao mercado, tivemos um mega ajuste das placas tectônicas e o cenário hoje é quase de regozijo. Que tal avaliarmos as ações recentes da SEC nos Estados Unidos?

Em março de 2021, a SEC anunciou a criação da Força Tarefa de ESG e Mudanças Climáticas dentro da sua Divisão de Fiscalização para proativamente examinar a integridade dos dados sobre mudanças climáticas e ESG nos quais os investidores estavam se apoiando cada vez mais para a tomada de decisão de alocação de capital.

Até aí, imaginaríamos que o resultado seria, por exemplo, a redução do número de produtos financeiros ofertados com o rótulo de ESG, assim como já havia ocorrido na União Europeia com a entrada em vigor da taxonomia verde. Ledo engano.

Em 28 de abril de 2022, o Brasil foi surpreendido com uma ação judicial proposta pela SEC em face da Vale. Nela, a SEC alega que a empresa “enganou investidores sobre a segurança e estabilidade das barragens que foram construídas para armazenar resíduos das suas operações minerárias”.

O regulador complementou: “Enquanto tirava vantagem integral do mercado de capitais nos Estados Unidos, a Vale cometeu fraude ao intencionalmente ocultar o risco de que uma das suas barragens mais antigas e perigosas, a barragem de Brumadinho, poderia romper.”

Essa ação é resultado da atuação da força-tarefa da SEC e nasceu com o cruzamento de dados ESG públicos da companhia, desde relatórios de sustentabilidade, a fatos relevantes, comunicados ao mercado, apresentação a investidores, ofertas de emissão de dívida e, ouso dizer, até mesmo o Sumário Executivo do Relatório de Investigação Independente contratado pelo conselho de administração da companhia para avaliar o ocorrido em Brumadinho.

RIP relatórios vazios

Neste ponto, mando meus sentimentos aos relatórios de sustentabilidade retratando projetos filantrópicos com uma criança sorridente segurando uma muda de árvore na capa! Eles finalmente devem repousar em berço esplêndido, dando lugar a relatórios que tragam dados ESG conectados ao negócio e, preferencialmente, integrados com dados financeiros.

Mas a SEC não parou por aí. Instaurou processo contra a BNY Mellon Investment Adviser, Inc. por declarações falsas e omissão de dados ESG na tomada de decisão de investimento para certos fundos mútuos gerenciados pela gestora. Em maio de 2022, para resolver a demanda, a gestora concordou em pagar multa de US$ 1,5 milhão.

Adam S. Aderton, co-responsável pela unidade de gestão de recursos da divisão de fiscalização da SEC fez uma pontuação muito interessante: “Como ilustra essa ação, a SEC responsabilizará gestoras de recursos quando elas não descreverem com precisão a incorporação dos fatores ESG nos processos de seleção de investimentos.”

Ações para regular e supervisionar a qualificação ESG e a respectiva divulgação de dados ESG têm pipocado por todo o mundo em esferas diversas. No mercado de capitais, além da recomendação aos reguladores que a IOSCO já havia publicado em 2021 sobre práticas, políticas, procedimentos e divulgações ESG na gestão de ativos, em 2022 ela anunciou plano de trabalho abrangente para desenvolver as finanças sustentáveis, com acertada declaração de seu presidente, Ashley Alder, sobre integridade:

“(…) é de extrema importância que os reguladores intensifiquem seus esforços para assegurar que os mercados contribuam positivamente para os desafios da sustentabilidade, de forma a assegurar a integridade do mercado financeiro e a proteção dos investidores.”

Alinhada a esse cenário, a ESMA, responsável pela regulação dos mercados de capitais europeus, colocou o combate ao greenwashing como a prioridade número 1 do seu roadmap de finanças sustentáveis para o biênio 2022-2024. O presidente da ASIC, regulador do mercado de capitais australiano, declarou que produtos rotulados como ESG estavam sendo examinados em ação clara de combate ao greenwashing.

Na esfera de produtos de consumo, em abril de 2022, a Federal Trade Commission (FTC), via procuradoria, propôs ações judiciais em face dos varejistas Kohl’s e Walmart alegando publicidade e venda de produtos têxteis enganosamente rotulados como bambu e informando que o bambu era produzido por processos sustentáveis.

A FTC também analisará caso referido a ela pela National Advertising Division relativo à publicidade de chicletes como naturais e biodegradáveis por parte da Simply Gun. A Advertising Standards Authority, no Reino Unido, conduziu caso relativo a greenwashing envolvendo a empresa de produtos de aveia Oatly, que extrapolou a fala de um especialista em clima sobre cortar laticínios e carne da dieta correlacionando-a com a redução do impacto ambiental do consumidor.

Unindo consumidores e investidores, após ter conduzido investigações por 3 anos, em 2019 a Procuradoria do Estado de Massachusetts, EUA, ajuizou ação em face da Exxon Mobil alegando divulgação de informações enganosas aos consumidores sobre os impactos dos combustíveis fósseis na mudança climática e aos investidores sobre os riscos climáticos que impactariam negativamente o valor da companhia. Em maio de 2022, o tribunal de Massachusetts rejeitou pleito da Exxon para rejeitar a ação, decisão que foi recebida como vitória relevante pela procuradoria, dando continuidade ao processo.

Não faltam ações mundo afora por parte de atores diversos focadas em prover informações ESG de qualidade e úteis ao processo de tomada de decisão de alocação de capital, seja via investimento, seja via consumo. A pergunta que fica é: onde andam os reguladores brasileiros, em especial, a CVM?