Sharm el-Sheikh – Do lado oposto do edifício onde os representantes de governos discutem como cortar suas emissões de CO2, o britânico Nigel Topping está ocupado com todo o resto, por assim dizer.
Ele é um dos dois Defensores de Alto Nível do Clima, como foi batizado o grupo da ONU que tenta coordenar os esforços voluntários de descarbonização de todas as entidades que não sejam governos nacionais.
Durante quase três anos, Topping foi o responsável pela campanha Race to Zero. Hoje ela conta com mais de 11.000 integrantes, entre universidades, empresas, instituições financeiras e cidades.
O objetivo é obter dessas entidades compromissos públicos e baseados na ciência para atingir a neutralidade de carbono em 2050 – com um corte de pelo menos 50% das emissões em 2030.
A palavra-chave é ciência. Um dos pilares da Race to Zero é a chancela de organizações como a iniciativa Science Based Targets.
O processo é complexo e custoso e envolve a cadeia de valor inteira, dos fornecedores aos clientes finais. Os critérios são estritos. Baixar a barra não permitiria que mais empresas aderissem?
“Você quer ganhar a Premier League [a primeira divisão do futebol inglês] ou a terceira divisão?”, diz Topping. Relaxar os critérios, afirma ele, pode abrir as portas para o greenwashing.
“Sim, tem que contar os escopos 1, 2 e 3. Se você financia o setor de energia, sim, tem de cortar as emissões que está financiando. Sério, de verdade, mesmo.”
Topping, que foi diretor executivo do CDP (antigo Carbon Disclosure Project), encerra seu mandato como Defensor do Clima no final da conferência no Egito. Beliscando um pote de frutas secas em sua sala na COP27, ele conversou com o Reset.
Leia abaixo a entrevista.
Como o senhor avalia o progresso da campanha Race to Zero nestes três anos?
Hoje temos cerca de 11.000 integrantes. Isso representa um crescimento de quase 100% desde um ano atrás. Ainda há uma predominância de membros da Europa e da América do Norte, mas estamos crescendo bastante no Sul Global.
Já notamos que a primeira onda das companhias que aderiram vêm reduzindo suas emissões e estão atingindo suas metas de forma muito consistente. As mais ambiciosas estão inovando e ganhando mercado.
Também olhamos para a transformação de alguns setores, como produção de cimento, transportes, aço e assim por diante. Definimos metas numéricas para 2030, que é quando teremos de cortar as emissões pela metade.
Para chegarmos ao aço verde, por exemplo, precisamos de mais reciclagem, mas também de mais hidrogênio verde. Hoje, a produção [dessa fonte de energia] é praticamente zero, mas haverá um crescimento exponencial.
Projetamos uma meta de 150 milhões de toneladas de aço verde produzidas por ano até 2030. Hoje estamos em menos de 1 milhão. Parece que não vamos conseguir. Mas quando você olha para todos os compromissos, não só os de net zero, mas de construção de usinas de aço verde ou de reforma das existentes [que usam carvão], temos um pipeline de 60 milhões de toneladas.
Em muitos desses setores já alcançamos massa crítica, com os principais players comprometidos com a neutralidade.
E empresas de países emergentes, como Brasil, Índia e China? Como elas estão participando desse movimento?
Em geral um pouco mais devagar, mas veja os bilhões que [o bilionário indiano Gautam] Adani está investindo em energias verdes. Várias empresas da América Latina estão inovando e atraindo talentos.
Essas economias emergentes perceberam a oportunidade de alcançar ou ultrapassar concorrentes estabelecidos com essa nova competitividade.
E, como no Chile e na Colômbia, com a eleição do presidente Lula veremos um ambiente político muito diferente para os negócios comprometidos com a transição.
A campanha Race to Zero anunciou em junho critérios mais estritos para as novas adesões e para os novos integrantes…
[Interrompendo] Não é isso. O compromisso sempre foi rever os critérios de adesão anualmente. Fizemos isso três vezes, agora as regras serão mantidas assim por três anos, porque estamos satisfeitos com elas.
Não mudamos o lugar da linha de chegada. Ela continua sendo: se você é uma empresa ou um banco, reduza as emissões de toda a sua cadeia de valor de acordo com metas que limitem o aumento da temperatura a 1,5°C.
Estamos apenas sendo mais claros em relação ao que esse objetivo significa. Sim, tem que contar os escopos 1, 2 e 3. Se você financia o setor de energia, sim, tem de cortar as emissões que está financiando. Sério, de verdade, mesmo.
Porque, sem clareza, você abre a porta para o greenwashing. Um banco diz que é net zero porque acende as luzes da sua sede com energia renovável? Não estamos interessados, pois 99,9% do impacto está na carteira de empréstimos.
A Gfanz, aliança net zero que representa o mundo financeiro dentro do Race to Zero, anunciou que não vai impor esses critérios aos seus membros. Qual é o impacto disso na campanha que o senhor lidera? Foi um retrocesso?
[A Gfanz foi anunciada na COP26, em Glasgow. Nos últimos meses, grandes bancos americanos como Bank of American, JP Morgan e Morgan Stanley ameaçaram abandonar a aliança por causa das novas metas mais rigorosas anunciadas em junho, como a de ‘restringir’ novos financiamentos a projetos de combustíveis fósseis. Os bancos alegavam risco de serem processados por seus clientes e por práticas anticompetitivas. Diante da pressão, o compromisso foi suavizado, permitindo que as instituições permaneçam na aliança sem que o dinheiro deixe de fluir para fontes de energia poluentes.]
Impacto zero [Topping faz um zero com a mão]. A questão é que a política está maluca nos Estados Unidos hoje em dia. Temos 19 Estados processando bancos por práticas anticompetitivas.
Mas não existe ameaça à concorrência. O que existe é gente tentando evitar que os ativos de combustíveis fósseis de seus clientes percam valor.
Mudamos os critérios da Gfanz para retirar apenas uma exigência estrita. Mas as sete alianças setoriais [como de bancos, gestores de fundos, seguros, fundos de pensão etc.] continuam sendo parceiras da Race to Zero e todos os seus critérios são aprovados por nossos especialistas.
A imprensa vem noticiando que alguns grandes bancos americanos podem abandonar a Gfanz.
Também li isso, mas nenhum dos bancos procurou Mark Carney [ex-presidente dos BCs inglês e canadense e que lidera o Gfanz] ou a mim para dizer que estava saindo. São apenas rumores e manchetes exageradas.
No Brasil, pouquíssimas empresas tiveram suas metas aprovadas pela SBTi. É um processo complexo e longo. Não existiria um equilíbrio, uma maneira de baixar a barra para que mais empresas possam assumir compromissos?
Você quer ganhar a Premier League [a primeira divisão do futebol inglês] ou a terceira divisão?
Se você quiser ganhar a terceira divisão, então a Amazônia morre. Não temos tempo para ficar mexendo nos critérios de quem joga com quem.
Mas, seguindo sua analogia, na primeira divisão só jogam os times grandes, com muitos recursos.
Nenhuma analogia é perfeita. Estou falando de ambição. Claro que as grandes empresas têm mais recursos e capacidade. Mas as pequenas e médias são mais ágeis.
Quando comecei a trabalhar com isso, no CDP, tentamos convencer os fornecedores do Walmart a divulgar informações climáticas. [Os executivos da varejista] diziam: ‘não é justo, é mais fácil para as grandes etc. etc.’
Pois tivemos ótima resposta das pequenas. Elas perceberam uma chance de se tornarem mais competitivas. Cuidado ao afirmar que as empresas menores vão demorar para se mexer.
O senhor mencionou o Walmart. Que papel essas empresas gigantes terão para puxar a transformação das suas cadeias?
Elas têm dois papéis. Um é colaborar dentro de seus setores. Recentemente lançamos uma campanha para o varejo, com sete grandes associações nacionais trazendo seus filiados.
O outro é usar a força dessas companhias. A Apple está exigindo que seus fornecedores usem somente eletricidade de fontes renováveis na fabricação de seus produtos.
Aí as companhias sul-coreanas começam a fazer o mesmo, e o governo do país começa a perceber que [se não limpar sua matriz] pode perder competitividade.
É tudo interconectado. É assim que os sistemas mudam.
Existe um risco considerável de um eventual governo republicano na Casa Branca a partir de 2024 frear esses avanços, não?
Se você eleger um presidente que decidir desacelerar em relação à mudança climática, o maior risco é para a economia americana. Em alguns setores eles já estão perdendo para a China. Podem começar a perder mais rápido.
Pense nos carros elétricos. A participação deles cresce 100% ao ano na China e quase 100% na Índia. Os americanos querem dirigir carros chineses e indianos?
E não acho que um novo presidente consiga atrasar tanto as coisas. Lembra do Trump prometendo trazer o carvão de volta? Quanto o carvão voltou? Nada. Pelo contrário. Em algum momento os mercados tomam uma decisão e seguem em frente.
Qual será o papel dos créditos de carbono nessa corrida pelo net zero?
Eles são parte central da solução. Precisamos pagar aos proprietários de terras, comunidades e países pelo valor que tem a não-exploração desses territórios ou recursos.
Alguns países fazem isso muito bem. A Costa Rica consegue recursos importantes por manter a floresta em pé.
A minha esperança, e a do mundo, é que com Lula o Brasil volte ao mainstream nas negociações do clima. Mas particularmente os negócios brasileiros, que são brilhantemente empreendedores e inteligentes.
Lançamos uma iniciativa para mercado de carbono na África, e adoraria ver algo parecido na América Latina, impulsionado pelos países da região.
Que os recursos não sejam extraídos por europeus ou por quem quer que seja. Temos de evitar a repetição da exploração colonial, ou de uma mineradora que usa a mão-de-obra barata e leva embora todos os lucros. Você quer levar dinheiro para dentro desses países, não o contrário.
* O jornalista viaja a convite da International Chamber of Commerce