Em janeiro de 2011, fui mandada como repórter para o Vale do Cuiabá, em Petrópolis, após uma madrugada de chuva devastadora. A primeira história que deveria apurar: uma casa onde teriam morrido 14 pessoas da mesma família.
Chegando lá, me deparei com o que talvez alguns chamem de apocalipse. Eu não sabia que tantos tons de marrom eram possíveis. Quatro metros de lama soterravam parte da cidade.
Do lado dos haras do Vale do Cuiabá, fica o Buraco do Sapo, bairro muito pobre onde vivem os trabalhadores que atendem as casas dos ricos. Naquele verão, o tsunami de barro sepultou milionários e miseráveis com a mesma fúria.
Minha primeira parada foi no IML, onde encontrei um garoto de 14 anos sentado na sarjeta. Ele era morador do Buraco do Sapo. Havia perdido absolutamente todos os familiares, vizinhos e amigos. “Não sobrou ninguém”, ele balbuciou.
Depois de caminhar 5 quilômetros com lama até os joelhos, cheguei à casa coral no Vale do Cuiabá. Ali jazia uma família inteira. Os bombeiros encontraram os corpos dois adultos e três crianças num banheiro. Em outro cômodo, uma grávida. O caçula de 2 anos seguia desaparecido.
Os dias que se seguiram foram de uma dor que carrego até hoje – e eu era apenas espectadora da tragédia. Acompanhei resgates com as famílias rezando para que a escavadeira trouxesse à luz os corpos de seus entes queridos.
Assisti ao quanto o ser humano pode ser vil, promovendo turismo mórbido e saqueando quem havia perdido até o próprio sentido de viver. E vi também o quanto o ser humano pode ser puro amor e acolhimento, no trabalho de voluntários.
Não acredito que se tenha chegado a uma contagem exata de quantos morreram naquela ou nesta catástrofe. Lembro do corpo de uma vítima que foi encontrado a 40 km de onde ela morava naquela ocasião.
E lembro também das promessas. Muitas promessas de que isso jamais se repetiria, de que o poder público interviria. O governador do Rio era Sérgio Cabral. Seu vice, Luiz Fernando Pezão, e ele coordenou in loco as operações da Defesa Civil.
Ficamos hospedados no mesmo hotel em Nova Friburgo, outra das cidades duramente atingidas na Região Serrana, e para onde me desloquei depois da cobertura em Petrópolis. Num café da manhã, me sentei ao lado de Pezão e papeamos. Ele falou, como falaria em coletivas de imprensa, sobre planos de mapeamento, de habitação popular, de controle de encostas.
O que realmente saiu do âmbito da promessa foram as sirenes. Um grande resumo do Brasil. Na ausência de grandes ações estruturais, instalam-se alertas para que as pessoas tentem escapar do desastre.
Onze anos depois, aqui estamos.
Em que medida parte do que aconteceu agora era evitável? É a pergunta que o jornalismo profissional deve tentar responder.
* Flávia Tavares é jornalista. Atualmente, é editora-chefe no site da CNN Brasil. Foi repórter especial do Estadão, repórter e editora da revista Época em Brasília e em São Paulo.