Já era hora de falar sobre os rios. A frequência com que o nível das águas sobe demais ou baixa batendo recordes históricos de seca aumentou a ponto de deixar as previsões à mercê das surpresas de cada ano. A recuperação dos cursos de água, por meio das chuvas ou da drenagem natural para voltar a um volume considerado equilibrado, não acompanha a intensidade das mudanças climáticas
Foi em torno desses rios, no mundo todo, que surgiram os primeiros assentamentos do período neolítico, quando o homem dominou a agricultura e a domesticação de animais, e as primeiras cidades da Antiguidade. Havia chegado a hora de estabelecer raízes, e a água era essencial.
Quando os centros urbanos eram fundados a certa distância das fontes ou o volume era insuficiente, a tecnologia disponível na época já interferia na natureza e trazia a água para perto: reservatórios, aquedutos e desvios de cursos naturais garantiam o suprimento.
Daí para frente, muita história e muitos motivos conectam as mais variadas culturas e civilizações aos seus rios.
A autora Monika Vaicenaviciene, nascida na Lituânia, encontrou um jeito de explicar essa conexão sem se afastar de duas margens que podem parecer antagônicas: a da poesia e a da não-ficção. Em O que é um rio?, publicado no Brasil em 2023 pela editora WMF Martins Fontes, ela parte da pergunta-título feita pelo neto à sua avó para levar os leitores a uma grande viagem pelo tempo e pelo espaço, pelos mitos e fantasias, pelas sensações, sentimentos e também para o futuro.
Enquanto a avó borda uma toalha de mesa, começa a responder que o rio é um fio e que desenha um caminho por onde passa, promovendo encontros entre as pessoas. A partir daí, discorre sobre os significados do rio como viagem, casa, força vital, nome, mistérios, memória, cheiro, profundeza, energia, espelho, caminho e oceano.
Ao longo do percurso, ela apresenta muitos fatos e dados – vem daí todo o conteúdo documental da obra – e também filosofa. Faz perguntas e provoca a imaginação.
“O que aconteceria se a água dos rios sumisse?”
“Nas profundezas do rio existem resquícios do passado da Terra. Lá vivem espécies que surgiram antes dos dinossauros – criaturas que chamamos de fósseis vivos.”
Ao longo da conversa, a avó cita os maiores rios do mundo, contando suas origens, suas histórias e principais características. O Brasil, terra de rios, está representado pelo Negro, Paraná e Amazonas, cujo nome viajou muito para batizar as águas que atravessam a maior floresta tropical do mundo. Um rio é um nome, já diz o capítulo.
Em outro – Um rio é energia – fala das hidrelétricas e das barragens, onde apresenta Itaipu aos leitores. Mais uma vez, uma mescla de informações históricas e de alertas sobre os riscos e as consequências desse tipo de empreendimento.
“Quem controla o curso do rio controla o curso de muitas vidas. É uma grande responsabilidade.”
Dessa forma, a autora pula de uma margem à outra misturando dados a lembranças pessoais, histórias reais, lendas e cria o que se tem chamado de narrativa documental poética. Ela conta que imaginou o livro como um atlas. Em seguida, criou os elementos que fariam a conexão entre os capítulos para que os leitores captassem a urgência de contar essa história. Nasceu então a ideia da avó, do neto e do bordado.
“Estabeleci para mim mesma a tarefa de criar um livro que ajudasse as crianças e os adultos a olhar de uma maneira nova para o que os rodeia, com a intenção de proteger e encorajar o cuidado pelo planeta, afirmou, em uma entrevista para a revista de design inglesa Computer Arts, em janeiro de 2019, quando a primeira edição do livro foi publicada na Suécia, pela Opal, editora familiar e independente.
“Os rios funcionam como um espelho do que acontece ao redor. Mas um rio cheio de lixo e óleo – será possível ver qualquer coisa nele?”
As ilustrações foram feitas com guache, aquarela, lápis de cor e grafite, de diferentes intensidades. Camadas de cores foram acrescentadas em um software de edição de imagens. O texto foi escrito à mão e aplicado às páginas e, em seguida, transformado em uma fonte exclusiva.
Monika estudou artes gráficas e gravuras na Academia de Arte de Vilnius, capital da Lituânia, e participou, como estudante visitante, de um programa na Academia de Artes de Gotemburgo, na Suécia, e na Universidade de Artes de Londres. O que é um rio? já foi traduzido para 18 idiomas. Recebeu 16 reconhecimentos, entre prêmios, menções e presença em listas especializadas. Entre eles, foi destaque nas Feiras do Livro de Bolonha, na Itália, e de Xangai, na China, está na lista dos melhores livros para crianças de 2021 do Washington Post e na lista dos 30 melhores livros para crianças da revista Crescer, em 2024.
Livros sobre rios e a nossa relação com eles
São muitos os livros sobre rios publicados no Brasil. Para complementar a discussão, deixo uma pequena lista de obras que tratam da relação das pessoas com os rios. Seja com esperança, seja ao apresentar as consequências da exploração desenfreada da natureza. Todos eles abrem espaço para reflexão, para perguntas e para imaginar.
E se? Uma pergunta curtinha, que rende um papão.
Escrito por Yohana Ciotti e ilustrado por Isabelle Benard, foi publicado pela editora Aletria em 2021. A partir de uma enchente na cidade, discute a ocupação dos espaços pelas águas e pelas pessoas e os papéis que podemos/escolhemos assumir em meio a situações de crise.
Publicado pela editora independente e familiar de Pernambuco, Pó de Estrelas, em 2018. A escritora Katia Gilberto e a ilustradora Bruna Assis Brasil contam a história da amizade de Manuela e Anaí, uma menina de cidade e uma indígena, que têm uma missão. O rio é cenário e personagem principal dos encontros que a obra propõe.
Primeiro livro-solo da autora Anita Prades, que escreve e ilustra, lançado pelo Selo Emília, em 2018. Ilustrações selecionadas para a Bienal de Bratislava, em 2023. Discute a paisagem urbana e o que ela esconde, com seu cimento, sua velocidade e seu barulho.
Inspirada pela pintura naïf, a autora argentina Vanina Starkoff, que vive no Brasil desde 2014, propõe uma travessia pelo rio em que vários personagens se cruzam. A partir de suas embarcações e atividades é possível imaginar e identificar narrativas paralelas e refletir sobre o ritmo da vida, sobre o caminho e sobre o destino. Publicado em 2014, pela editora Pallas.
Um poema que chora a morte do Rio Doce, após o rompimento da barragem que arrastou diversos distritos do entorno de Mariana, em Minas Gerais, em 2015, matando gente, animais e destruindo o ecossistema da região. Escrito por Leo Cunha e ilustrado por André Neves, foi publicado pela Pulo do Gato em 2016.
Até o fundo das águas
Impossível não deixar o link para “A casa em cubinhos” (tradução livre) da animação japonesa de Kunio Kato e Kenya Hirata, de 2008. Premiadíssimo – incluindo um Oscar de curta-metragem em 2009, virou livro, publicado na França e na Argentina em 2012.
Um avô vive numa região inundada. Sua casa foi construída em cima de outra e de outra e assim sucessivamente, conforme o nível das águas subia. Um dia, deixa cair seu cachimbo preferido e resolve mergulhar para encontrá-lo. Faz uma viagem às suas lembranças mais profundas e revela o que fica sob as águas em casos de enchentes e desastres ambientais. Trata-se sempre de histórias e memórias.