
O legado da COP30, realizada no mês passado em Belém, será medido por acordos diplomáticos, mas também pela capacidade do setor privado de transformar compromissos de descarbonização em realidade escalável. É neste contexto que a diversidade dos biomas brasileiros deixa de ser apenas um detalhe geográfico para se tornar o alicerce de uma estratégia econômica global de adaptação.
Quando observamos a vasta e diversificada geografia brasileira, os biomas podem ser vistos quase como abstrações: Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica. No entanto, para a indústria de alimentos e bebidas, por exemplo, eles são a base de uma infraestrutura econômica vital.
A estabilidade do solo, a previsibilidade hídrica e o equilíbrio climático são ativos produtivos dos quais dependem cadeias de valor inteiras — da bataticultura à fruticultura. Diante da crescente volatilidade climática e da degradação de ecossistemas, a transição de um modelo extrativo para um modelo regenerativo deixa de ser uma opção e se torna uma condição para a perpetuidade do negócio.
A agenda de descarbonização, com metas como net zero, exige que as corporações traduzam compromissos globais em ações concretas e mensuráveis no campo. Mas qualquer meta numérica só faz sentido quando desce para o chão, literalmente, em lugares concretos, com produtores reais, adaptada às diferentes realidades, fragilidades e potencialidades.
O objetivo é criar valor não apenas ambiental, mas financeiro e social. Por isso, considerar o bioma é fundamental para implementar ações funcionais e perenes.
Sistemas agroflorestais na Caatinga
A Caatinga é frequentemente associada à aridez, mas é um bioma de invenção e resistência. Temperaturas extremas, irregularidade de chuvas e solos frágeis coexistem com uma biodiversidade impressionante e capacidade produtiva com o manejo adequado.
O aumento da frequência de secas e ondas de calor eleva o custo de produção e amplifica a vulnerabilidade socioeconômica, especialmente para pequenos produtores e mulheres rurais.
A implementação de sistemas agroflorestais (SAFs), como o consórcio entre culturas perenes e frutíferas (coco e cacau são dois exemplos), surge como uma solução robusta. A estrutura de plantas mais altas cria um microclima que atenua as temperaturas extremas e conserva a umidade do solo, viabilizando o cultivo de espécies mais sensíveis ao sub-bosque.
O resultado é um sistema produtivo mais resiliente, com cobertura permanente do solo, melhoria na ciclagem de nutrientes e redução da evaporação.
Do ponto de vista econômico, a diversificação de culturas gera novas fontes de renda e dilui os riscos associados à monocultura. Estrategicamente, esse modelo cria uma base para a futura valoração de serviços ecossistêmicos.
A capacidade de mensurar o aumento de matéria orgânica no solo e a melhoria na infiltração de água abre portas para mecanismos de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), conectando a sustentabilidade na ponta da cadeia a novos instrumentos financeiros. Experiências com este modelo regenerativo já existem e demonstram aumentos significativos de rentabilidade dos produtores, de até 60%.
Descarbonização de commodities do Cerrado
Notório “berço das águas” brasileiro, o Cerrado é o epicentro da produção agrícola nacional e, simultaneamente, um dos biomas mais pressionados pelo desmatamento e pela degradação do solo. Vale destacar que para commodities essenciais à indústria alimentícia, tais como soja, milho e batata, a gestão hídrica e a saúde do solo são fatores críticos de risco.
É justamente neste bioma que experiências estratégicas com fazendas de demonstração e modelos de pagamento por resultado se mostram vitais. Neste formato, o produtor não é remunerado apenas por “prometer” práticas, mas por entregar resultados mensuráveis como aumento do carbono no solo, redução da erosão, otimização do uso da água e diminuição das emissões de GEE por tonelada produzida.
Isso é viabilizado por um conjunto de tecnologias e práticas, como a rotação de culturas com adubos verdes, o manejo racional de fertilizantes, a irrigação de precisão baseada em dados e a implementação de biofábricas on-farm, que reduzem a dependência de insumos químicos e seus custos associados.
Esse sistema cria o elo entre a taxonomia da finança sustentável e a operação agrícola. Ao gerar dados robustos e verificáveis, habilita-se o acesso a linhas de crédito com juros atrelados a metas de sustentabilidade, seguros rurais mais sofisticados e, futuramente, a inserção em mercados de carbono regulados. Tratam-se de laboratórios vivos para a internalização de externalidades ambientais no balanço do produtor.
A paisagem fragmentada da Mata Atlântica
Se a Caatinga simboliza resistência e o Cerrado, a origem das águas, a Mata Atlântica é memória e necessidade de reparação. Originalmente, cobria cerca de 15% do território brasileiro; hoje, restam fragmentos que convivem com áreas altamente produtivas. Em regiões de intensa atividade agrícola, surge uma pergunta crítica: como produzir em paisagens fragmentadas e, ao mesmo tempo, recuperar funções ecológicas essenciais?
Sendo este um dos biomas mais biodiversos e mais desmatados do planeta, a Mata Atlântica convive com intensa produção agrícola (grãos, leite, hortifruti), pressão urbana e infraestrutura.
A crise climática se manifesta em eventos extremos de chuva e deslizamentos, impactando a logística e comunidades, além de ameaçar mananciais. Lá, o desafio é integrar produção, restauração e governança de paisagem: o mosaico produtivo–florestal destinado ao cultivo deve ser planejado em conjunto com corredores ecológicos, recuperação de matas ciliares e proteção de nascentes.
Isso reduz risco de erosão, protege água e cria condições para serviços de polinização e controle biológico. O objetivo não é apenas ter “fazendas modelo”, mas laboratórios replicáveis para fornecedores diretos, cooperativas, parceiros comerciais e institucionais.
Mudança sistêmica
O que conecta os três biomas é uma mudança profunda no entendimento mais complexo das relações entre clima, risco e valor, além da transparência total. O tópico ambiental surge como risco estratégico, ao lado dos riscos geopolíticos. Entender a natureza como infraestrutura econômica – solo saudável, água disponível, florestas em pé e biodiversidade funcional – não é um “luxo ambiental”, mas a base de ativos produtivos.
Neste pós-COP 30, em que muitos modelos de regeneração comprovadamente efetivos foram colocados “na mesa”, é preciso agir – e rápido. O compromisso global deve ser o de promover práticas regenerativas em larga escala nos próximos anos, investindo em infraestrutura natural, que reduz volatilidade, aumenta resiliência e atrai capital de longo prazo.
Sabendo que, para diversas empresas do setor, a grande maioria das emissões está no escopo 3 (muitas vezes acima dos 90%), fica claro que intervenções diretas na cadeia agrícola são o caminho mais eficaz para a descarbonização.
As estratégias apresentadas nos três biomas, alinhadas à circularidade de embalagens e à transição energética, formam um portfólio de ações para enfrentar esse desafio. O futuro da produção de alimentos depende da capacidade do setor privado de escalar esses modelos, em colaboração com o setor financeiro e com políticas públicas que incentivem e recompensem resultados ambientais concretos.
É essa história que queremos contar — com dados, exemplos concretos e, sobretudo, com pessoas de carne e osso por trás de cada hectare regenerado.
* Suelma Rosa é vice-presidente de assuntos corporativos da PepsiCo para a América Latina e doutora em Ciência Política, com experiência em sustentabilidade, impacto social, responsabilidade corporativa e governança nos setores público e privado.