Não há dúvidas de que a recente aproximação entre o mercado financeiro e a sustentabilidade, que foi rebatizada de ESG, traz ao mundo inúmeros benefícios.
Um tema que antes circulava entre um número limitado de empresas, grupos e fóruns agora ganha espaço em novas festas e ganha novos adeptos. Não quaisquer adeptos. Adeptos que controlam o fluxo do capital.
A movimentação de investidores preocupados em incorporar critérios ambientais, sociais e de governança em seus portfólios gera, em cascata, a movimentação das empresas (as que já estavam na festa e as que chegaram agora) e de toda sua cadeia produtiva.
Quem já estava casado com a sustentabilidade há décadas lutou muito para que esse namoro começasse e ele finalmente aconteceu.
Acontece que não há sustentabilidade sem esforço e, no meu microcosmo de atuação, percebo que há alguns querendo apenas flertar, em vez de ter um relacionamento sério com o tal ESG.
Sem, de forma alguma, deixar de celebrar essa nova relação, gostaria de fazer um contraponto de forma propositiva para que possamos aproveitar a potência desse novo advento ao máximo.
Percebo dois movimentos nos quais deveríamos prestar muita atenção.
O primeiro é o daqueles que acabaram de descobrir a roda, despertos pelos novos adeptos, e já querem reinventá-la.
Já recebi inúmeros relatos de clientes cujos colegas da área de relação com investidores (ou outra afim) resolveram criar uma nova área ESG, com uma nova equipe ESG e uma nova estratégia ESG, com novos indicadores ESG, em empresas que há algum tempo já tem uma área de sustentabilidade, com um time de sustentabilidade e inclusive uma estratégia de sustentabilidade, com consistentes relatórios e indicadores. Vocês contam ou eu conto?
O risco aqui, além da ineficiência, é obviamente trazermos a régua para baixo. É o foco excessivo na dimensão de práticas e processos subtrair energia da reflexão na dimensão de identidade e estratégia. Claro que aqui a resposta é ‘e’: as empresas deveriam focar em todas as dimensões e não em uma ‘ou’ outra.
Acontece que, como sabemos, as equipes e investimento das empresas são restritos, e, portanto, o risco que corremos é burocratizarmos o processo de integração de sustentabilidade e tornamos essa integração apenas utilitária.
Além das aparências
O segundo movimento, que é o que mais me preocupa, é a profundidade e a intenção por trás da integração ESG.
São inúmeros os relatos sem gestão, as materialidades sem reflexo na estratégia, os selos sem mérito, as áreas de sustentabilidade sem influência, as sustentabilidades de departamento ou nicho.
Há ainda as governanças de sustentabilidade sem poder deliberativo, as estratégias sem culturas organizacionais que as sustentem e muito “rainbow-washing” (que substituiu o antigo greenwashing): a arte de “empacotar” e indexar projetos já existentes a uma nova linguagem, no caso, à linguagem universal dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODSs).
Tudo isso em nome de um casamento de aparências — “precisamos ter o que mostrar, mas não queremos investir ou fazer esforço.”
Não há transformação sem esforço, sem investimento de recursos de todas as naturezas. Não há como sairmos de onde estamos, de um modelo falido de civilização, para um modelo mais inclusivo e menos predatório sem fazermos muito esforço. Não há como as empresas se transformarem em agentes regenerativos sem mudanças estruturais.
Não há gestão apropriada de riscos e possível aproveitamento das oportunidades trazidas pela ‘nova economia’ sem migrarmos de uma sustentabilidade focada em recursos e processos para uma direcionada a orientar estratégia e identidade. Não há relato ESG para ‘investidor/inglês’ ver que vá nos levar para onde precisamos, urgentemente, ir.
Sabemos que a sustentabilidade pode ser facilmente fagocitada para retroalimentar a manutenção do status quo.
Por outro lado, sabemos também quanto valor um investimento sério e consistente na integração dos critérios ESG pode trazer para uma organização e seus públicos, inclusive, o tão desejado alfa (geração de valor).
Vigiar e orar
Daqui do meu cercadinho tenho alertado os colegas que estão no front das empresas para ‘vigiar e orar’; ou seja, para serem guardiões da essência desse movimento que é transformar e não manter ou parecer.
Para que essa bolha que recentemente explodiu e levou sustentabilidade para novas terras possa, de fato, gerar transformação efetiva para além de sistematizar, organizar e prestar contas de critérios básicos ESG, para que essa nova onda seja realmente nova, é fundamental que haja uma compreensão sistêmica das questões envolvidas e que haja um esforço e investimento proporcionais ao desafio posto por uma intenção genuína de transformação de um lado (investidores) e de outro (investidas).
Sabemos que as métricas são apenas a ponta do iceberg, portanto, precisamos estar atentos ao mérito e às limitações desse movimento.
Há um risco intrínseco em pularmos direto para o ‘what’ sem refletirmos sobre o ‘how’ e, principalmente, sobre o ‘why’ (fazendo referência ao famoso golden circle de Simon Sinek).
Para além da definição ou comunicação de métricas ou das ações ou projetos relacionados, é fundamental revermos os padrões decisórios e tendências que os sustentam, revisarmos as estruturas a eles subjacentes e antes e, acima de tudo, refletirmos sobre os modelos mentais e crenças que os criaram e que nos trouxeram até aqui.
Que esse seja um movimento que nos ajude a endereçar e tratar as causas e não apenas os sintomas. Só então, quando fizermos desse novo movimento um propulsor de reflexões e ações mais amplas e profundas, poderemos dizer que investidores, investidas e o ESG/ Sustentabilidade estão em um relacionamento sério.
*Priscilla Navarrette é sócia-diretora da LUME, consultoria estratégica em sustentabilidade corporativa.