COLUNA - CAROLINE DIHL PROLO

Desmatamento é a nova fronteira da litigância climática

Ação do Ibama pede indenização de R$ 292 mi de fazendeiro proprietário de terras que teria causado a emissão de 900 mil toneladas de CO2 devastando vegetação nativa

Madeira obtida em desmatamento ilegal na Amazônia
A A
A A

Até pouco tempo atrás, desmatamento era tido como um problema exclusivamente ecológico, que afeta o equilíbrio da flora e fauna local. Nos estudos de impacto ambiental no Brasil, aos poucos passou-se também a prestar mais atenção aos impactos da supressão vegetal para o “microclima” da localidade, como a perda de incidência de sombra que afeta a retenção de calor na superfície e torna as cidades mais quentes.

Hoje enxergamos com muita clareza que os impactos do desmatamento vão além do local ou regional. Eles têm dimensão planetária. O desmatamento afeta diretamente a concentração de gases de efeito estufa global, causando danos quase irreversíveis ao sistema climático como um todo. E, de acordo com a legislação brasileira, é possível entender que esse dano ao sistema climático global é indenizável.

O aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera tem como causa predominante as emissões causadas por atividades humanas, como a supressão de florestas. As florestas estocam carbono, e, quando cortadas, o eliminam para a atmosfera. O CO2 que se acumula forma um verdadeiro “cobertor”, que mantém o calor represado na Terra.

O problema é que hoje não temos métodos comprovadamente eficazes e em escala para remover esse carbono do cobertor da atmosfera. Todo o carbono que jogamos na atmosfera se acumula por centenas de anos. Todo o carbono que jogamos na atmosfera agrava esse efeito cumulativo. Todo o carbono que jogamos na atmosfera aumenta a temperatura da Terra.

Essa concentração de gases de efeito estufa pode ser comparada à situação de um rio que não pode ser totalmente despoluído, ou de um solo que não pode ser completamente descontaminado. Há uma quantidade residual de degradação ambiental que não pode ser revertida.

Ainda que seja possível despoluir plenamente aquele rio ou aquele solo, muitas vezes isso só acontece depois de anos ou décadas de processos de limpeza. O ecossistema que habitava o local se perde, e deixamos de usufruir os serviços ambientais prestados por este rio e solo saudáveis.

Na legislação brasileira, esses danos causados pela perda temporária ou permanente de ativos da natureza como rios e solos saudáveis precisam ser reparados. A prioridade em termos de reparação ambiental é restaurar o bem ambiental danificado – o que se chama de “reparação in natura”.

Se isso não for possível de forma integral, ou seja, se a reparação não for possível ou se não for possível recuperar o rio poluído plenamente, restituindo-o ao estado anterior, deve-se indenizar monetariamente aquela parte do dano que não puder ser reparada. É o chamado princípio da reparação integral do dano ambiental.

Os danos climáticos

A mesma lógica pode ser usada em relação aos danos causados à atmosfera pela emissão de gases de efeito estufa. São danos ao “sistema climático equilibrado”, sistema esse que também faz parte do “meio ambiente ecologicamente equilibrado” protegido pela Constituição Federal Brasileira.

Tal qual com a perda temporária ou permanente de um rio, os danos são sofridos pela população e pela sociedade que se beneficia de um sistema climático equilibrado, inclusive dentro da perspectiva intergeracional: as gerações futuras terão sua qualidade de vida comprometida por causa disso.

A Política Nacional do Meio Ambiente define meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Nesse conceito tão amplo, é possível compreender o sistema climático. E a mesma lei define também “degradação da qualidade ambiental” como toda a alteração adversa das características do meio ambiente.

A partir daí é possível compreender o lançamento de gases de efeito estufa decorrentes de desmatamento sem autorização legal ou em áreas protegidas também como uma forma de poluição. Um outro princípio importante diz que o poluidor deve pagar os custos relacionados à poluição que causa: o princípio do poluidor-pagador. Isso poderia se aplicar aos poluidores que ilegalmente suprimem vegetação, causando assim poluição pela degradação do sistema climático.

Aqui vale salientar também que o dano climático – pelas emissões de GEE causadas pela perda da floresta – não se confundem com o dano ambiental da perda da vegetação em si, ou seja, pelo que ela representa para o equilíbrio da flora, fauna e do sistema ecológico. De acordo com o direito brasileiro, as duas reparações poderiam ser devidas.

Esses argumentos foram articulados pelo Ibama, representado pela Advocacia Geral da União, em uma ação de indenização no valor de mais de R$ 292 milhões de reais proposta contra um proprietário de terras no Amazonas que teria causado a emissão de 901.600 toneladas de CO2 pelo desmatamento ilegal de 5.600 hectares de floresta.

Não é a primeira ação judicial desse tipo no Brasil. Em 2021, o Ministério Público Federal ingressou com uma ação judicial similar contra um fazendeiro – também do Amazonas – que teria suprimido ilegalmente 2,488.56 hectares de área de vegetação. O pedido de reparação, contudo, levava em consideração outros critérios de quantificação do dano, totalizando um valor de R$85.4 milhões de reais.

Outra questão importante aqui é como calcular esse dano climático. No caso da ação do Ministério Público, considerou-se como referência o preço da tonelada de carbono equivalente previsto nas disposições do Fundo Amazônia, num valor de US$ 5.

Já no caso da AGU, o preço do carbono emitido foi calculado considerado o conceito de Custo Social do Carbono (CSC). O CSC é o custo líquido atual dos impactos globais causados pela emissão de mais 1 tonelada de CO2 na atmosfera.

O conceito surgiu do reconhecimento de que os impactos das mudanças climáticas têm custos para a sociedade, tais como impactos na saúde, na propriedade, na biodiversidade etc., e que esses danos devem ser calculados em termos monetários e incorporados aos processos de tomada de decisões.

Assim, o CSC busca somar todos os custos e benefícios quantificáveis da emissão de uma tonelada adicional de CO2, em termos monetários. A aplicação do CSC é comum na análise de custo-benefício da elaboração de normas regulatórias em países como o Canadá e os Estados Unidos. Na falta de um CSC definido pelo governo brasileiro, o pedido da AGU considerou o preço do carbono sugerido pela OCDE no valor de € 60 por tonelada de carbono equivalente.

Embora haja um caso similar na Indonésia, esses casos de dano climático por desmatamento são peculiares do Brasil, e há uma razão para isso: diferentemente dos demais grandes emissores de GEE no mundo, o Brasil tem 74% de suas emissões atreladas ao uso da terra.


A cobrança vem do Estado


O relevante no caso da AGU é notar que dessa vez quem está cobrando a conta do dano climático é o Estado brasileiro, o que pode marcar uma ação sistemática em outros casos de infração ambiental por supressão de vegetação ilegal no Brasil.

Desmatamento ilegal é um problema já há muito combatido no país, com inúmeras mudanças de Código Florestal tentando resolvê-lo, mas agora temos clareza de que é também um problema de dimensão de impacto planetário, uma fonte de emissões que é responsabilidade do Estado Brasileiro controlar, como signatário do Acordo de Paris.

Como prevê a Constituição brasileira, o Poder Público tem o dever de proteger o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, assim como o Estado brasileiro deve cumprir suas obrigações internacionais de promover medidas de controle das emissões de gases de efeito estufa.

São novos tempos que se aproximam: tempos de consciência, escrutínio e litigância climática, e de reconhecer que a perda da floresta tem um custo alto e que alguém paga por ele.

* Caroline Dihl Prolo é advogada especialista em mudanças climáticas. Cofundadora da LACLIMA, organização de juristas dedicados ao desenvolvimento do direito das mudanças climáticas na América Latina. É consultora do IIED, instituto que apoia os países menos desenvolvidos nas negociações da Convenção do Clima e do Acordo de Paris