DUBAI – O presidente da França, Emmanuel Macron, reuniu no fim de junho 40 líderes mundiais em Paris para falar da necessidade de reformar um sistema financeiro global antiquado e incapaz de responder aos desafios interconectados da mudança climática e da pobreza.
Boa parte do que se discutiu na cúpula saiu da cabeça de Avinash Persaud, ex-banqueiro que nasceu em Barbados, cresceu no Reino Unido e fez carreira na City de Londres.
Hoje, Persaud é a figura mais influente nas conversas sobre os fluxos globais de dinheiro para países em desenvolvimento. Seus conselhos são ouvidos por governantes dos grandes emergentes – e representam esperança para os mais vulneráveis às consequências do aquecimento global.
Foram suas ideias que inspiraram a recém criada plataforma de proteção cambial para investimentos verdes no Brasil, anunciada pelo BID e pelo Ministério da Fazenda na semana passada.
O mundo em desenvolvimento precisa de trilhões de dólares para se recuperar das tragédias que já aconteceram e para se preparar para as que inevitavelmente ocorrerão no futuro.
“Esse dinheiro todo não vai sair dos cofres do governo americano”, diz Persaud.
No novo desenho proposto por ele, virá do setor privado, com a ajuda de bancos nacionais e multilaterais como Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e BNDES.
Conhecidas como Iniciativa de Bridgetown, nome da capital de Barbados, as propostas de Persaud envolvem uma atuação decisiva dessas instituições, incluindo na forma de proteções contra a variação cambial, um dos entraves para a entrada do investidor estrangeiro em vários países e regiões.
Ele já conseguiu definir a agenda. Agora, vai implementá-la na prática. Em meados de janeiro, assume o cargo de assessor especial para mudanças climáticas do BID.
Persaud define 2024 como o “ano dos pilotos”. Um dos mais importantes será o de redução do risco cambial brasileiro.
Há muito se fala em reformar o sistema criado no pós-guerra. A visão de Persaud ganhou outra dimensão por causa da emergência climática e da voz de Mia Mottley, sua colega dos tempos de London School of Economics.
Primeira-ministra da pequena ilha caribenha de Barbados (281 mil habitantes), ela fez alguns dos discursos mais memoráveis sobre o risco real do aquecimento global para os países pobres e vulneráveis (veja abaixo).
Persaud conversou com o Reset na pequena sala reservada para Barbados na Dubai Expo City, onde acontece a conferência do clima.
Ele falou da importância da presidência brasileira do G20, seguida pela COP em Belém, e também de sua empolgação em passar da teoria à prática – mesmo sendo obrigado a trocar a ensolarada Barbados por Washington no auge do inverno do Hemisfério Norte.
A Iniciativa de Bridgetown faz parte da conversa sobre a reforma das finanças internacionais. Quais foram as conquistas até aqui e quais seriam os próximos passos mais urgentes?
A iniciativa trata de mudar a agenda. A primeira parte disso foi conseguir escala para mover os ponteiros.
Aquela ótima ideia que gera meio milhão pode ser sustentável, mas não na velocidade e na escala que precisamos. Tendo identificado a escala, a segunda é criar uma abordagem sistêmica.
Mostramos desde o início que precisamos de US$ 2,4 trilhões por ano [de financiamento climático] e quais as maneiras de conseguir essa quantia.
Esse dinheiro todo não vai sair dos cofres do governo americano. Então, de onde vai vir?
Aquilo que gera receitas vai vir do setor privado. Para o que gera economias, precisamos dos bancos de desenvolvimento. E tem coisas que não trazem receitas nem geram economias – são apenas custos.
Existem receitas na mitigação [redução de emissões de gases de efeito estufa], poucas em adaptação e pouquíssimas em perdas e danos. Coisas diferentes pedem financiamento diferente.
Velocidade, escala e sistema. Acho que no fundo é disso que trata a Iniciativa de Bridgetown. E, se você ler a Declaração de Paris sobre o sistema financeiro global, o comunicado do G20, a declaração financeira da COP, isso é Bridgetown.
A vitória de 2023 é a convergência da agenda financeira para Bridgetown. Não me importo se eles não mencionarem mais esse nome.
Você tem sido um defensor da reforma do sistema financeiro por muito tempo, como o presidente Lula. Qual papel ele e o Brasil podem desempenhar na presidência do G20 para avançar nessa agenda?
Lula pode desempenhar um papel vital. Primeiro, porque ele é Lula e tem uma posição poderosa como pessoa. Segundo, ele é presidente do Brasil, um dos mais importantes países em desenvolvimento.
E, no ano seguinte à presidência do G20, o país terá a presidência da COP [a COP30, em 2025, acontece em Belém]. Vivemos uma incrível confluência de questões críticas, mas eu incitaria o Brasil a refletir sobre este momento.
A agenda tradicional por mais representação não está andando. Pedimos isso há 40 anos. Mas deveríamos focar em mudar as coisas na prática, porque as pessoas já estão sofrendo os impactos. Poder não depende só das leis.
Temos fóruns com representação. Quando criamos o Fundo Verde do Clima, o primeiro conselho foi dividido meio a meio entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Mudou alguma coisa? Não!
Alterar a dinâmica das negociações é uma condição necessária, mas não suficiente. Quero mudança no desenvolvimento e na economia, porque só assim teremos uma mudança real na política.
Triplicar os recursos emprestados pelos bancos de desenvolvimento multilaterais, destravar US$ 1 trilhão em investimentos do setor privado, tornar o sistema mais resistente a choques: isso é o que vai fortalecer e dar poder aos países em desenvolvimento, não os votos em um conselho.
Isso também não se reflete na percepção sobre as COPs? As pessoas parecem estar perdendo a esperança no processo.
Sem dúvida o cinismo se insinuou [nas COPs] e agora está permanentemente aqui. Os veteranos não enxergam as mudanças porque estão acostumados com um ciclo de esperanças criadas e depois esmagadas.
Mas o que aconteceu nos últimos 12 meses? Temos cláusulas de pausa em contratos de dívida. Quando acontece um desastre natural, os países podem suspender os pagamentos dos juros e do principal por dois anos.
O Banco Mundial concordou, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, [a agência de] crédito à exportação do Reino Unido e dos Estados Unidos também. Temos 80 bilhões de dólares de direitos especiais de saque (DES, um mecanismo do FMI) redirecionados.
Os bancos multilaterais sabem que precisam oferecer mais recursos e disseram que vão começar com US$ 200 bilhões nos próximos dez anos. É uma coisa grande. A ideia está se espalhando.
Mas não é suficiente.
Não, longe disso. Mas é muito em comparação com o que tínhamos um ano atrás.
E o Brasil e o BID estão considerando um piloto para a nossa ideia mais imaginativa, quase radical: desbloquear o fluxo de dinheiro para países em desenvolvimento como o Brasil fornecendo garantias não para o projeto, mas para as coisas que o setor privado não pode controlar, como a moeda.
Isso vai mexer o ponteiro?
Se funcionar, vai. Precisamos testar. Quem melhor do que o Brasil e o Banco Central brasileiro, que têm um histórico de inovação, um histórico de pensar profundamente sobre essas questões?
Outros países, como o Peru, também têm inovado na redução dos riscos de investimento, ou pelo menos na percepção dos mercados internacionais, em relação às incertezas macro. Para mim, 2024 será um ano de pilotos.
E as operações de blended finance, que une capital de filantropia ou de bancos de desenvolvimento com dinheiro privado? Fala-se muito nesse modelo como uma forma de alavancar recursos.
A filantropia é muito pequena. Não vai nos salvar com seu dinheiro. As ideias e o apoio são muito importantes, mas precisamos de US$ 2,4 trilhões por ano.
É por isso que precisamos mexer no sistema. Bancos de desenvolvimento fazendo empréstimos de longo prazo e baixo custo para resiliência. E não quero que isso seja um subsídio, eu não quero que seja blended finance, porque aí vai ser pouca coisa. Não tem subsídio suficiente no mundo.
Veja, da minha posição como Barbados, não vou dizer não a quem me oferecer uma doação. Mas não tem a escala necessária. Os bancos multilaterais têm que emprestar com a mesma taxa de juros que tomam emprestado. É assim que eles vão triplicar o crédito que oferecem.
O Brasil está numa posição privilegiada em comparação com a maioria dos países em desenvolvimento. Temos uma democracia e um sistema financeiro que funcionam. Essa experiência do hedge cambial, por exemplo, funcionaria em países vulneráveis e endividados, que hoje têm custos de capital altíssimos?
Esses países não precisam da solução cambial, porque não são grandes emissores [de CO2]. Se quisermos proteger o planeta, precisamos nos concentrar em atrair fluxos do setor privado para a transformação verde nos grandes emissores, como Brasil, México, Indonésia, África do Sul e Índia.
Todos esses países têm democracias estáveis e são grandes economias. Eles têm mercados, mas o risco desses mercados é precificado muito acima do risco real.
E quanto aos Planos de Transição Energética Justa, como o da África do Sul?
Parte de nossas ideias surgiu do fracasso desses programas, basicamente porque estavam usando blended finance. Não há financiamento misto suficiente. O setor privado precisa de muito mais apoio do que isso.
Na África do Sul, o investidor precisa de proteção contra a volatilidade do rand, que tem características muito semelhantes à do real. O custo de hedge de ambas as moedas é parecido, entre 10% e 12% ao ano.
Se você é um investidor americano e tem um projeto no Brasil ou na África do Sul, os primeiros 10% do retorno ficam com esse custo de hedge.
Mas a realidade é que o real e o rand não caem 10% ao ano. A média é mais próxima de 6%. Se tivermos um instrumento que reflita o risco verdadeiro, podemos atrair esses investidores americanos ou europeus.
E quem vai oferecer a garantia são bancos multilaterais, que vão te cobrar só o que a moeda cair, não um prêmio excessivo, já que eles não estão em busca do lucro.
Ao mesmo tempo em que cobra ambição climática, o Brasil parece determinado a explorar mais petróleo, defendendo que os países ricos abandonem os fósseis primeiro. Isso significa continuar lançando CO2 na atmosfera. Qual a sua opinião a respeito?
Acho que a posição do Brasil é correta. O custo de passar de uma fonte de energia para outra é uma função do custo de capital. Muitos dos nossos amigos na sociedade civil não apreciam isso.
Eles acham que as energias renováveis são baratas e que só não recebem mais investimento porque nos submetemos às vontades da indústria de petróleo e gás. É uma leitura completamente equivocada.
No Brasil, o custo de capital é de 12%. Nos Estados Unidos, o custo de capital é de 4%. Os americanos podem lucrar mudando para energias renováveis e pagando aos investidores 4%. O Brasil precisa pagar 12%.
Então, vamos começar [a eliminação dos fósseis] com os países desenvolvidos. Não porque são desenvolvidos nem por causa da história ou como algum tipo de compensação, mas porque eles têm custo de capital mais baixo.
Os Estados Unidos são o maior produtor de petróleo do mundo e agora um dos lugares mais baratos para investir em renováveis, especialmente com o IRA [o pacote de incentivos do governo Biden]. Agora, se já é difícil fazer a transição por lá, no Brasil é dez vezes mais.
E o mundo também precisa de mais capacidade de energia limpa. Se virarem uma chave e a gente largar os fósseis, o que acontece com quem não tem alternativa?
Precisamos que esses países usem nossas garantias cambiais para fazer investimentos massivos em renováveis, o que também ajudará a reduzir suas emissões.
O senhor está otimista quanto ao resultado desta COP?
Acho que a COP entregou o que poderia: um fundo de perdas e danos, a recapitalização do Fundo Verde do Clima, uma declaração que desenha como deve funcionar o financiamento climático e o Balanço Global, que mostra onde estamos e onde deveríamos estar.
No ano que vem o senhor vai trabalhar no BID, em Washington. Qual é o plano?
Bem, não era meu plano sair da ensolarada Barbados em janeiro, no auge do inverno (risos). Mas a missão é urgente. Estou focado na reunião da primavera dos bancos multilaterais. Agora temos o fundo de perdas e danos. Voltando à Iniciativa de Bridgetown, temos de garantir que os limites [de crédito] do Banco Mundial sejam triplicados.
A COP não decide isso. A COP pode falar e incentivar, mas é só. Odeio o frio, mas não posso esperar que o tempo melhore para me mudar para Washington.
Você acredita que o BID possa ter um papel de liderança nessa transformação das finanças internacionais?
Com certeza. O BID foi uma das primeiras instituições a ter linhas de crédito contingenciais para países que sofrem desastres naturais. Eles atuam como garantidores em operações de swap de dívidas por proteção da natureza.
Quando nós de Barbados trabalhamos com eles em nossa primeira operação, eles foram um ótimo parceiro. Quando pensava como poderia passar da definição para a implementação da agenda, eles me escolheram e eu os escolhi. Foi mútuo.
No BID você vai trabalhar bastante com o Brasil, imagino.
Tenho muitas expectativas. O Brasil tem um governo progressista preocupado com essas questões em nível global e local. O país tem uma situação única na Amazônia e algumas propostas únicas para lidar com ela.
Além disso, tem um sistema financeiro bastante robusto, como você disse, onde há muita inovação acontecendo. No Rio ou em São Paulo, se eu falar de swaps de dívida por natureza as pessoas entenderiam. Não é assim em muitos países.
O Brasil está bem posicionado para ajudar a liderar tanto a região quanto o mundo na transformação que os países em desenvolvimento precisam realizar para proteger o planeta.
Você era banqueiro na sua encarnação anterior. O que o fez mudar de rumo, e por que mais de seus ex-colegas não seguem o mesmo caminho?
Bem, nasci em Barbados, no Caribe. Se você nasce em um país em desenvolvimento, enxerga desenvolvimento e política em todos os lugares. Acredito que meus colegas nascidos em países ricos dão de barato algumas coisas.
Sendo banqueiro em Londres, sempre pensei muito nessas coisas. Onde as finanças [tinham impacto] positivo e onde não tinham. Trabalhei muito com o sistema bancário internacional e fluxos de capital.
Fui um dos arquitetos da regulamentação bancária de Basileia 3. Desenvolvemos algo chamado política macroprudencial [uma ferramenta para limitar impactos sistêmicos de crises]. Foi quando percebi que meu amor era realmente pela política.
Naquela época, minha amiga da faculdade Mia Amor Motley [primeira-ministra de Barbados] estava se preparando para o governo e me pediu ajuda. Acabei fazendo parte da equipe que ajudou a desenvolver nosso plano com o FMI, empréstimos do BID e empréstimos do Royal Bank. Gostei muito desse meu tempo na política.
Uma das coisas que acredito que posso trazer para o BID é o olhar das finanças e mudança climática em um nível macro, porque o BID está fazendo muito trabalho em um nível micro, além de levar uma perspectiva de país devedor.
Poucas pessoas em bancos de desenvolvimento sabem o que é ser devedor desses bancos. Negociei e participei das negociações com todos eles. Conheço o lado bom e ruim.
A crise climática é no fundo uma crise de desigualdade, não?
Tenho falado de maneiras bastante abstratas e anódinas sobre custo de capital. Mas a mudança do clima é só outra janela para o problema da desigualdade, porque as pessoas mais impactadas são as mais pobres.
Digo para os meus amigos que os jovens dos países doadores não se colam no asfalto ou jogam tinta em quadros motivados por questões de desenvolvimento. Eles não se acorrentam aos trilhos de trem por causa da escassez de água ou para reduzir a pobreza. Estão fazendo isso pelo clima.
Não acho que seja um problema, porque para tratar de clima você precisa abordar o desenvolvimento. O clima é nossa ponta de lança. E sabe de uma coisa? Todos os dias, no verão e no inverno, os países ricos pensam: “Meu Deus, será que isso é a mudança climática?”
Eles não pensam em desenvolvimento todos os dias. Não pensam em pobreza todos os dias. É compreensível. Mas, se isso os faz refletir sobre deslizamentos de terra nas favelas no Brasil, que realmente precisamos construir resiliência porque vidas estão em risco, excelente. Vamos fazer isso por razões climáticas. Tem diferença?