Durante a COP27, no Egito, tive a honra de facilitar uma das discussões do chamado Global Stocktake (também conhecido pela sigla GST), a convite da UNFCCC, a Convenção do Clima da ONU. O GST é um mecanismo de ambição do Acordo de Paris e, de forma inédita, instaurou um processo bastante arejado de diálogos técnicos sobre como o mundo poderá alcançar junto os objetivos globais de mitigação, adaptação e financiamento climáticos, antes que seja tarde demais.
Das quatro horas ininterruptas de conversa, uma frase dita por uma negociadora me marcou: “Todos os ministros de Estado têm que ser ministros climáticos”. Ela ressoa absolutamente bem com o novo momento político da agenda climática brasileira.
É uma síntese do desafio de governança que temos: primeiro, de que não basta UM ministro de clima; segundo, que não basta ter caixinhas batizadas de clima se o nível político não se apropriar da pauta; e terceiro, que o ingrediente principal para que “todos” sejam “ministros climáticos” é a coordenação transversal.
Sobre o primeiro ponto, a experiência nos mostra que as tentativas de um ou outro órgão de exercer poder concentrado sobre a agenda fracassaram miseravelmente. Se um só ministério dominar a pauta e às vezes até impedir que capacidades e competências se espraiem por toda Esplanada, a agenda não decola.
Já vimos isso acontecer diversas vezes no Brasil – como já foi o caso do Ministério das Relações Exteriores nos anos 1990, depois do Ministério da Ciência e Tecnologia nos anos 2000 e também do Ministério do Meio Ambiente nos idos de 2010 – infelizmente. E por isso estamos tão atrasados em agendas como adaptação.
Isso poderia se repetir com a criação de uma autoridade climática sob a Presidência da República? A depender do ocupante, sim. Se a pessoa escolhida tiver perfil desagregador ou vontade de fazer sombra sobre outras pastas, certamente essa boa ideia seria transformada em pesadelo.
O fetiche de copiar a figura do “climate envoy” presente nos outros países me parece uma péssima ideia para o Brasil, justamente por concentrar poder em uma personalidade – e só.
Divisão de tarefas
Já pensou se uma autoridade climática fosse incumbida de definição de posições e de representações internacionais, bem como da condução das negociações? Essa ideia duplicaria o trabalho do Itamaraty, sem qualquer necessidade. E poderia dar a impressão de que o foco do Brasil deva ser a posição internacional: claramente, não é. Nosso foco deve ser garantir bons resultados domésticos.
Por isso, o pulo do gato é que certas funções sejam compartilhadas entre ministérios, respeitadas as competências fundamentais, como as do Ministério das Relações Exteriores quanto à política externa.
A mesma coisa vale para o monitoramento de emissões de gases de efeito estufa, hoje a cargo do MCTI. Precisa duplicar isso numa autoridade? Não, precisa ir além dessa função: aproveitar o que já existe e, com base nisso, estruturar algo que ainda não temos (a precificação das emissões, em um sistema de comércio cap-and-trade).
Por isso, quando me perguntaram se eu preferia uma autoridade climática embaixo da Presidência da República ou sob o MMA, minha resposta foi: nem uma nem outra coisa. A necessidade não é “encaixar” todas as responsabilidades da agenda em um único lócus, mas definir muito bem “quem é quem” e criar mecanismos de liderança, coordenação e integração de políticas e ações públicas e privadas.
Então, a questão é que a forma deve seguir a função objetivada (form follows function). As funções devem ser bem definidas e formar um conjunto sólido de instituições incumbidas de agir sob a urgência que a emergência climática exige.
E o que isso tem a ver com todos os ministros serem ministros climáticos? Bem, dos 37 ministérios criados no governo atual, 11 contêm clima na sua estrutura, explicitamente. São 4 secretarias (do MDIC ao MRE), algumas subsecretarias (na Fazenda, por exemplo) e diversos departamentos (como o de justiça climática, no Ministério dos Povos Indígenas).
O MMA, por exemplo, desenhou muito bem uma estrutura que atribui papéis distintos, mas relacionados, para biodiversidade, bioeconomia, combate ao desmatamento e mudança do clima. Há secretarias com mandatos fortes, a trabalharem na máxima potência. Me pareceu muito bom. Por outro lado, há a intenção de estruturar uma autoridade climática, mas os detalhes não são conhecidos publicamente.
Melhor ainda é que a líder da pasta, a vanguardista Marina Silva, tem clareza da sua missão e não quer andar só.
É essa liderança ambiciosa e agregadora que precisamos instigar nos demais ministérios: que usem as caixinhas climáticas sob eles para construir agendas novas. Que o ministro da agricultura, por exemplo, faça mais do que apenas implementar o Plano e o Programa ABC+, partindo para uma agenda mais estruturante de transição para um agro resiliente e de baixo carbono. Só ele tem esse poder.
Lições internacionais
Por fim, as melhores práticas de governança climática internacionais são, de uma forma ou outra, abordagens transversais. Nos Estados Unidos, a chamada abordagem para o governo por inteiro (whole-of-government approach) se desdobra em uma força tarefa nacional, sob a Casa Branca.
É fascinante: ela convocou todas as autoridades federais para apresentarem planos de ação, com orçamento e pessoal, dentro das suas missões institucionais. Foi assim que Defesa, Educação, Tesouro e outras 22 pastas se estruturaram, todos ao mesmo tempo, em torno de um projeto comum de política climática. E cada um ao seu modo tem tarefas climáticas a cumprir. O enviado especial do clima, John Kerry, é mais uma peça da governança, não a única.
Há muitos outros bons exemplos a nos inspirar, como o modelo sul-africano de comissão presidencial para transição energética justa, assim como o modelo de comissão independente de cientistas que assessora o governo neozelandês.
O Brasil ainda não tem uma abordagem para o governo por inteiro, ainda que “transversalidade” tenha virado um mote neste início de governo. E o que falta para isso? Criar mecanismos de coordenação tanto dentro do governo federal quanto do governo com a sociedade, os entes federados e os setores da economia.
É preciso separar um arranjo para diálogo nacional e outros para coordenação federal. Isso porque a agenda tem que ir muito além dos órgãos federais e o que eles farão juntos. Até hoje, muitas questões sensíveis da agenda não ganharam alcance nacional porque ficaram confinadas aos esforços burocráticos para dentro dos governos (de novo, foi o caso da adaptação).
Um Conselho Nacional de Mudança do Clima e o Comitê Interministerial poderão fazer esses papéis – eles já foram citados na nova estrutura do MMA, por exemplo, mas ainda não materializados em decretos. Precisam ser dotados de liderança e recursos.
O Brasil está construindo uma nova arquitetura de política climática. É preciso um “ecossistema” de autoridades e lideranças governamentais para efetivar a nossa potência.