Os critérios ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês) ganharam força no mundo dos investimentos e dos negócios brasileiro desde o ano passado.
Mas, conforme mais investidores e companhias abraçam a agenda, fica cada vez mais claro seu forte viés ‘carbonocêntrico’.
Quase todo dia tem alguma empresa anunciando um compromisso para reduzir suas emissões de gases de efeito estufa.
Não que a questão das emissões deva ser negligenciada. A crise climática ameaça o mundo todo, inclusive o Brasil. Mas a lente com que se olha o problema é importada: na Europa, que puxa a agenda ESG, a transição energética, com a substituição de fontes fósseis de energia, é o grande desafio a ser vencido. A história se repete nos Estados Unidos.
Mas todo esse foco — num país em que 80% da matriz energética é de fontes renováveis — não acaba nos distraindo de outras questões tão ou mais relevantes tanto em termos de risco quanto em termos de impacto?
Para ajudar a delinear o que deveria ser uma agenda ESG brasileira, o Reset consultou seis profissionais do mercado que têm sido protagonistas em fazer avançar o tema em suas áreas de atuação.
De forma consensual, todos apontam que, num país de desigualdades sociais gritantes, o ‘S’ deveria vir para o centro da conversa.
“No Brasil o ‘S’ é enorme. Mesmo quando falamos de preservar a Amazônia, há milhões de pessoas na região que precisam ter um sustento. E o europeu não entende isso, porque esse problema não existe lá”, diz Fernanda Camargo, sócia da casa de gestão de patrimônio Wright Capital, que nasceu sob os preceitos do ESG e do impacto.
“A grande questão no Brasil é como transformar as pessoas de um passivo para um ativo. É preciso empoderar as pessoas, dar acesso a crédito, a saúde e educação”, completa.
Mas enfatizar o ‘S’ automaticamente traz à tona uma discussão subjacente sobre quais os limites entre os papeis do Estado e do setor privado.
“O papel social das empresas vai além do lucro. As empresas não podem pensar como antes porque ficaram muito grandes, o consumidor espera mais delas e as mídias sociais aumentaram os riscos à reputação”, diz Marcio Correia, sócio da gestora de fundos JGP, que tem feito um trabalho intensivo de integração ESG.
A seguir, os cinco temas de maior consenso para uma agenda ESG tropicalizada, com a colaboração de Camargo, de Correia; do ex-banqueiro e conselheiro de empresas, Fabio Barbosa; da diretora de sustentabilidade da Natura, Denise Hills; do sócio da Vox Capital, Daniel Izzo, e do sócio da Fama Investimentos, Fabio Alperowitch.
1. Desigualdade e inclusão social
O tema campeão entre as sugestões foi o do combate à desigualdade social — com algumas derivações.
“A prioridade número 1 das empresas deveria ser o social. As empresas já fazem uma parte, mas precisam ir além do que determina a legislação e jogar a favor de melhorar o país. O Brasil é um país pobre e desigual, que flerta com o abismo e só não pula, como Venezuela, Bolívia e Paraguai, porque tem escala”, diz Marcio Correia, da JGP.
Fabio Alperowitch, da Fama, vai na mesma linha. “Se as empresas não cuidarem da desigualdade, daqui a pouco não tem mercado consumidor, sem falar no caos social, no problema de segurança, que gera instabilidade e fluxo de investimento negativo.”
Além dos colaboradores, o tema engloba as comunidades do entorno das empresas. “As empresas têm que cuidar dos seus arredores e saber qual o impacto que causam quando chegam num lugar. É preciso dar oportunidade para a comunidade local, porque o social passa por não deixar uma pegada social”, diz Fabio Barbosa.
2. Racismo
Reduzir desigualdades sociais no Brasil passa, obrigatoriamente (embora não apenas), pela inclusão racial.
“As empresas precisam dar oportunidades a pessoas de origens diferentes e não ficar na perpetuação do status quo da sociedade. O que, no Brasil, está muito ligado à questão racial. A inclusão do negro é uma pauta muito brasileira”, diz Fabio Barbosa.
Nessa frente, quando o tema ganha tração dentro das empresas, ainda aparece focado no aspecto quantitativo, de fixar metas de percentual de negros no total de funcionários ou na alta liderança.
“A diversidade vai muito além do número de cabeças, de perguntar quantos negros a empresa tem e ir fazendo os ‘checks’. Essa agenda tem que estar num nível estratégico, tendo em consideração que, quanto mais diverso for o grupo de colaboradores, mais perspectivas diferentes para o negócio você vai ter”, diz Daniel Izzo, da Vox.
Além de fazer um recrutamento mais inclusivo, o passo seguinte é dar condições das pessoas prosperarem dentro das empresas. “Se as pessoas não vêm com a formação desejada, é preciso prepará-las. É abrir mão do inglês na seleção [para eliminar barreiras] e dar acesso ao ensino do inglês depois. Não se trata de abrir mão da meritocracia, mas de preparar as pessoas”, opina Barbosa.
A avaliação quase unânime é que é papel das empresas atuar nessa qualificação. “Se for deixar para o governo fazer, vai demorar muito. A sociedade vai cobrar as empresas antes disso. Então, é uma questão de risco, mas também de visão ampla da oportunidade que está na diversidade”, diz Barbosa.
3. Disparidade salarial
Dentro da questão da desigualdade, a disparidade salarial dentro das companhias é um tema à parte.
“Num dos países mais desiguais do mundo, não dá para falar em ESG e ter um executivo que ganha mil, duas mil vezes o que ganha o piso da empresa”, diz Daniel Izzo.
Adotar métricas da diferença salarial entre o piso e o topo e estabelecer metas para fechar o gap ainda é algo pouco presente na agenda das empresas do país.
Denise Hills, da Natura, defende que as empresas adotem uma lógica de compartilhamento de valor . “A desigualdade não fecha mais a conta nos próximos 10 anos. As pressões sociais tendem a ser ainda maiores no pós-pandemia e as empresas precisam compartilhar valor com os colaboradores. Esse dinheiro vai chegar também ao [mercado] consumidor.”
4. Amazônia e desmatamento
Se o social deveria ganhar protagonismo, a pauta ambiental e climática não pode ser negligenciada — até porque as consequências dos eventos climáticos deverão ser mais devastadoras para populações mais vulneráveis.
Para construir um “E” brasileiro, no entanto, é preciso ajustar o foco da discussão, dando menos atenção à transição energética e mais à Amazônia e ao desmatamento, a maior fonte de emissão de CO2 do Brasil.
“Para o mundo como um todo, vai ficar muito mais caro resolver a questão climática e de biodiversidade sem a Amazônia no jogo”, diz Denise Hills.
E a quem cabe essa pauta?
Em primeiro lugar, às empresas que atuam diretamente na Amazônia. “Empresas como Vale, Suzano, Eneva, JBS e demais frigoríficos e Natura têm que ser as primeiras a olhar isso. Têm que ter o compromisso de proteger a floresta. A Amazônia é a calçada dessas empresas e cada um tem que manter a sua calçada limpa, até para continuar operando, porque a sociedade vai cobrar e querer saber como estão lidando”, diz Fabio Barbosa.
Hills, da Natura, diz que mesmo as empresas que não têm negócios no bioma amazônico têm que atuar. “A compensação do CO2 de uma empresa de moda, por exemplo, reverte em benefícios para a Amazônia”, diz ela, referindo-se aos créditos de carbono comprados de projetos de proteção ou restauração florestal.
Além disso, diz, cabe a todas as empresas exigir rastreabilidade da sua cadeia de fornecimento e comércio justo. Marcio Correia destaca também o papel dos bancos e políticas de financiamento que desincentivem o desmatamento.
Izzo, da Vox, por sua vez, faz um alerta sobre a epidemia da compensação de CO2 que tomou conta das empresas. “Me dói o estômago ouvir falar de compensação. Então podemos fazer os maiores absurdos e depois dar um dinheiro para plantar uma árvore? O Brasil precisa sair urgentemente dessa lógica de compensação, porque a natureza não se regenera na velocidade do crescimento dos lucros.”
5. Agronegócio
Pela dimensão do PIB do agronegócio no país, essa é uma “gigante e importantíssima pauta muito brasileira”, diz Alperowitch.
Por um lado, o tema conversa com o do desmatamento, por causa da expansão das fronteiras agrícolas e da pecuária. Mas não só.
Aqui, entram questões como os métodos de cultivo, como a monocultura, e o uso de defensivos químicos. “Os defensivos são nocivos para o efeito estufa, acabam com a biodiversidade, fazem mal à saúde das pessoas e levam ao esgotamento do solo”, diz Fabio Alperowitch. “Além disso, o agro é um setor que tem relações trabalhistas péssimas, com alto índice de trabalhadores temporários, sem direitos trabalhistas, e com alto nível de acidentes.”