
Bill Gates, fundador de uma empresa que mudou o mundo, filantropo e investidor que colocou bilhões de dólares de sua fortuna na luta contra a mudança do clima, publicou nesta semana um texto endereçado aos tomadores de decisão que estarão reunidos na COP30, em Belém, daqui dez dias.
Eis o argumento do fundador da Microsoft: precisamos abandonar a visão catastrofista e repensar prioridades. Vivemos uma emergência planetária, mas ela não vai dizimar a humanidade e não é o único dos nossos problemas.
O foco excessivo no corte de emissões de gases estufa, escreve Gates, rouba recursos que vão garantir aos habitantes dos países muito pobres melhores condições de vida – ou a própria sobrevivência – em um mundo mais quente.
Este é um resumo de dois parágrafos de “Três Verdades Difíceis sobre o Clima”, memorando de 17 páginas publicado por Gates em seu site.
A reação foi imediata. Bill Gates, depois de anos alertando para o risco da mudança climática, está voltando atrás. Bill Gates, que diz aplicar um rigor quase científico à filantropia, nega décadas de pesquisas acadêmicas. Bill Gates, o bilionário que cruza o mundo em seu jatinho, está mostrando sua verdadeira cara: a emergência climática não é problema dele.
Donald Trump foi um dos que aproveitaram a oportunidade para lacrar. Em sua rede social Truth Social, em que apesar do nome ele costuma postar mentiras, ele declarou “vitória sobre a farsa da mudança climática”.
O que Trump deixou de dizer é que o manifesto de Gates foi motivado em grande parte pelo corte de 80% em seus programas de ajuda humanitária do governo americano por meio da agência USAID.
Um estudo publicado na revista médica The Lancet, uma das mais respeitadas do mundo, estimou que essas iniciativas salvaram 90 milhões de vidas nas últimas duas décadas. Se os cortes atuais forem mantidos até 2030, 14 milhões de outras mortes poderiam ser evitas, calculam os autores.
Lacrar x argumentar
O assunto é um pouco mais complicado que um tweet. As verdades de Gates podem não ser absolutas, mas elas merecem ser ouvidas e, quem sabe, dar início a uma conversa difícil.
Em primeiro lugar, ele não sugere o abandono dos esforços de hoje para mitigar problemas ainda mais graves no futuro. Fazer isso é a garantia de que a adaptação será ainda mais cara e complicada.
Mas “as pessoas vão viver e prosperar na maior parte do planeta no horizonte que conseguimos prever”. Não se trata de ignorar a gravidade da crise climática, mas de buscar uma métrica que vá além das toneladas de carbono e leve em conta a melhoria de condições de vida das populações vulneráveis.
“Não é tarde para adotar uma visão diferente e ajustar nossas estratégias. A COP30 é um lugar excelente para começar, especialmente porque a liderança brasileira está colocando a adaptação climática e o desenvolvimento humano no topo da agenda”, escreve ele.
Pragmatismo
A mais recente carta de André Corrêa do Lago, o presidente da COP30, trata justamente da urgência da adaptação. Mas a ideia é que o tema receba a mesma atenção dada à mitigação.
Gates não é político nem precisa tomar cuidados diplomáticos. Ele aponta algo evidente: os recursos estão longe de ser suficientes para fazer tudo o que precisamos, na velocidade que a crise exige. É hora de fazer escolhas.
Um painel de economistas reunido pela Convenção do Clima, a UNFCCC, calculou em US$ 1,3 trilhão a conta anual da mudança climática para os países em desenvolvimento.
Europeus precisam investir em defesa diante da ameaça militar russa. Os americanos deram as costas para o resto do mundo. Na COP do ano passado, os países ricos se comprometeram em atingir ao menos US$ 300 bilhões em 2035. O valor desagradou a todos, e a “COP do financiamento” terminou em recriminações e uma divisão profunda entre o Norte e o Sul Global.
A solução encontrada foi a preparação do “Baku to Belém Roadmap to 1.3T”, documento preparado por Azerbaijão e Brasil com ideias de fontes públicas e privadas e instrumentos financeiros inovadores que cubram o abismo até o US$ 1,3 trilhão. O mapa vai apontar caminhos – mas não há garantias de que chegaremos ao destino.
E a escassez de recursos não se resume ao dinheiro carimbado para iniciativas verdes. O governo americano fez cortes profundos nos recursos destinados à ajuda humanitária e programas relacionados à saúde.
Os mais pobres já são e continuarão sendo os mais afetados pela nova realidade do clima. “Mas para a imensa maioria dessas pessoas, [ela] não será a única e talvez nem a maior ameaça às suas vidas e bem-estar. Os maiores problemas são pobreza e doenças, como sempre.”
Bill Gates é pragmático. Fundou a Microsoft em 1975, aos 19 anos (ele completou 70 um dia depois da publicação do texto). Nos 25 anos seguintes ele construiu a empresa que lançou as bases da vida digital que levamos hoje.
“Peço que todos na COP30 se perguntem: como garantir que a ajuda [financeira] gera o maior impacto para as pessoas mais vulneráveis? O dinheiro destinado ao clima está sendo gasto nas coisas certas? Acho que a resposta é não.”
Descarbonizar ou desenvolver?
Ele dá como exemplo a energia. O consumo está diretamente relacionado ao crescimento econômico. Mais energia é sinônimo de enriquecimento. “Mas o que é bom para a prosperidade é ruim para o meio ambiente”, escreve Gates.
Bancos multilaterais têm sido pressionados a não financiar mais projetos ligados a combustíveis fósseis, inclusive em países de baixa renda.
O impacto nas emissões globais será baixo, e esses países “terão muito mais dificuldade para tomar empréstimos com juros baixos para usinas que levariam eletricidade para casas, escolas e hospitais”.
Gates menciona um estudo da Universidade de Chicago que estima uma redução de mais de 50% nas mortes causadas pela mudança climática neste século quando se leva em conta o crescimento econômico de países pobres.
“A lógica diz que um crescimento econômico mais rápido e expansivo vai reduzir as mortes ainda mais.”
É uma afirmação quase óbvia, mas essa dimensão às vezes parece esquecida nas discussões sobre gigatoneladas de carbono. Mitigação não pode impedir o desenvolvimento. Não é por acaso que China e Índia, dois dos maiores emissores atuais, só vão atingir o net zero muito depois de 2050.
Balanço Ético Global e mutirão
As opiniões de Bill Gates são uma expressão objetiva de algumas ideias centrais da presidência brasileira da COP30.
Tratar de saúde, de bem-estar e olhar para os mais vulneráveis é um dos objetivos do Balanço Ético Global, que tenta trazer para a mesa a dimensão moral – em termos de desigualdades econômicas, raciais, geracionais – da mudança do clima.
Gates também usa uma frase quase idêntica à do embaixador Corrêa do Lago em sua carta mais recente: “O desenvolvimento não depende de ajudar as pessoas a se adaptar a um clima mais quente – o desenvolvimento é a adaptação”.
Esse foco duplo em adaptação e desenvolvimento humano terá mais atenção na COP30 que em qualquer outra COP, diz Gates. “É um primeiro passo promissor.”
Mas não será suficiente. Ele conclui sugerindo foco em algumas tecnologias fundamentais que precisam ganhar escala e ficar mais baratas para acelerar a transição energética.
É difícil fazer isso na agenda oficial das COPs, pois o consenso é obrigatório. Mas compromissos práticos, com o acompanhamento do progresso, é algo possível na Agenda de Ação. Ele menciona o envolvimento de ativistas, investidores e empreendedores – o mutirão proposto por Corrêa do Lago.
Ele conclui mencionando o redirecionamento estratégico da Microsoft causado pela revolução da internet, há 30 anos.
Empresas têm, no fim das contas, um responsável pelas decisões. “Não existe um CEO que defina as prioridades ou estratégicas climáticas do mundo, e tem que ser exatamente assim. Elas são definidas pela comunidade global. Insto essa comunidade a fazer um redirecionamento estratégico: priorizar as coisas que terão o maior impacto no bem estar humano.”