COLUNA - CAROLINE DIHL PROLO

O que os mercados de carbono têm a ver com as enchentes do RS?

O mercado de carbono pode ser um instrumento para que o Brasil seja também uma potência da adaptação climática

Locais alagados pela enchente no município de Eldorado do Sul. Foto: Bruno Peres/Agência Brasil
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E se os mercados de carbono pudessem não só reduzir ou evitar emissões de gases de efeito estufa, mas também ajudar a promover adaptação e resiliência climática? Não é uma ideia nova. O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, do Protocolo de Quioto da ONU, já previa a obrigação de destinação de uma parcela dos rendimentos da geração de créditos de carbono para o Fundo de Adaptação criado nas Nações Unidas. O novo mecanismo do Acordo de Paris mantém essa lógica, e há um movimento para se encorajar essa prática também no mercado voluntário de carbono.

O MDL introduziu uma abordagem inovadora de financiamento para adaptação dentro de um mecanismo para financiamento de mitigação: instituir um “share of proceeds”, ou em português uma “parcela dos rendimentos”, sobre os créditos de carbono gerados em cada projeto, com destinação específica para o Fundo de Adaptação da Convenção do Clima, a UNFCCC.

Funciona da seguinte forma: quando um projeto MDL é validado e verificado, ele pode gerar Reduções Certificadas de Emissões (RCEs). Uma taxa de 2% é aplicada sobre todas as RCEs emitidas, mas essa retenção não é feita em dinheiro, e sim em RCEs.

De cada lote de RCEs emitido, 2% são retidos diretamente pelo Conselho Executivo do MDL. Por exemplo, se um projeto gera 1.000 RCEs, 20 RCEs serão retidas e 980 RCEs serão entregues ao titular do projeto. A porção retida é transferida para o fundo, que pode vendê-la no mercado.

Os recursos são utilizados pelo Fundo de Adaptação para financiar projetos de adaptação nos países em desenvolvimento, com base nas necessidades e vulnerabilidades específicas desses países em relação às mudanças climáticas.

O Fundo de Adaptação funciona dentro da UNFCCC e é um veículo muito querido pelos países vulneráveis por causa de sua governança singular. Diferentemente dos demais fundos climáticos, ele conta com representatividade majoritária de países em desenvolvimento.

Isso tem permitido que a tomada de decisão de alocação seja mais efetiva e os beneficiários tenham mais acesso aos recursos, já que os administradores têm mais condições de compreender as necessidades dos países vulneráveis.

Ao longo de cerca de 10 anos, o MDL já destinou mais de US$ 200 milhões de um total de mais de US$ 1 bilhão de recursos do Fundo de Adaptação, e ainda há projetos aguardando emissões de RCEs que serão destinadas.

A nova fase

Sucedendo o Protocolo de Quioto e seu MDL, o Acordo de Paris criou um mecanismo de créditos de carbono idêntico, no seu Artigo 6.4. Mas a ambição financeira é maior: 5% das Unidades de Redução de Emissões (novo nome dos ativos) geradas dentro do novo mecanismo serão retidas. O Fundo de Adaptação agradece.

Além disso, a decisão que regulamentou o mecanismo, na COP 21 em Glasgow, prevê que uma contribuição monetária para adaptação poderá ser adotada futuramente.

Mas a intenção era que isso fosse ainda mais longe. Os países vulneráveis defendiam que essa obrigação de retenção para o Fundo de Adaptação se estendesse às transferências de resultados de mitigação dentro das abordagens cooperativas do Artigo 6.2 do Acordo de Paris, os ITMOs.

A ideia era também não criar diferenciações entre os dois instrumentos de mercado de carbono do Acordo de Paris que pudessem tornar um dos instrumentos mais oneroso, e, portanto, menos atrativo para o mercado.

Contudo, não foi possível instituir essa obrigatoriedade sobre os ITMOs gerados no âmbito do artigo 6.2 do Acordo de Paris. Foi aprovada somente a previsão de que os países podem voluntariamente instituir essa medida em seus acordos bilaterais.

Muitos dos acordos bilaterais que já estão sendo firmados no âmbito do Artigo 6.2 têm previsto a retenção de 5% de share of proceeds sobre os ITMOs gerados e sua destinação medidas de adaptação.

É o caso por exemplo do acordo feito entre Cingapura e Gana em 2023, que prevê a obrigação de os desenvolvedores de projeto contribuírem com 5% dos rendimentos dos créditos para um fundo de adaptação do país africano.

O governo de Cingapura inclusive declarou sua intenção de adotar essa medida em todos os seus acordos de cooperação bilaterais para geração de créditos de carbono do Artigo 6 do Acordo de Paris. Os créditos de carbono serão gerados no território de Gana e adquiridos por Cingapura para uso principalmente em seu sistema de taxação de carbono doméstico.

Em junho de 2022, os 85 países mais vulneráveis emitiram uma declaração conjunta clamando aos atores do mercado voluntário de carbono que também adotem voluntariamente medidas de apoio à adaptação climática. O grupo, formado pelo bloco dos Least Developed Countries (da sigla “LDCs”, bloco político composto pelos países menos desenvolvidos do mundo) juntamente com o grupo das pequenas ilhas do Pacífico (conhecido pela sigla AOSIS – Alliance of Small Island States), encaminhou uma carta ao Integrity Council for the Voluntary Carbon Markets (ICVCM) pedindo ao órgão que adote os princípios do Artigo 6 em suas recomendações ao mercado voluntário de carbono.

Para esses que estão entre os países mais vulneráveis, recursos para adaptação são vitais, e há historicamente um desequilíbrio na alocação de financiamento climático para adaptação em comparação aos recursos dos fundos climáticos que vão para mitigação. O mercado voluntário de carbono pode desempenhar um papel importante como mecanismo de financiamento de adaptação.

Mais do que nunca, depois da catástrofe das enchentes que devastaram o estado do Rio Grande do Sul, olhar para a adaptação climática deve ser uma prioridade no Brasil. Precisamos urgentemente equipar nossas cidades para que sejam resilientes à mudança do clima, repensando-se a infraestrutura de drenagem, de prevenção de inundações, de sistemas de tratamento de água e de saneamento básico. Isso requer planejamento e investimentos volumosos.

Estimativas iniciais de investimento para a recuperação do RS, por exemplo, chegaram a valores próximos de R$100 bilhões, isso sem considerar a necessidade de reconstrução da infraestrutura com mais resiliência climática, o que vai demandar investimentos adicionais.

O financiamento para adaptação climática também passa a ser uma necessidade para o Brasil. Se o país é mesmo uma potência da bioeconomia e dos créditos de carbono de soluções baseadas na natureza, pode ser ao mesmo tempo a potência da adaptação climática, tudo em uma tacada só, por meio de um único instrumento: o mercado de carbono.

Foto: Bruno Peres/Agência Brasil