Um território de 50 milhões de hectares, área equivalente à de um país como a Espanha. Esse é o volume de terras e florestas federais “não destinadas”. Ou seja, terras que pertencem à União, mas às quais não foi atribuído um uso e que, por essa razão, são alvo fácil para todo tipo de irregularidade, como grilagem, pastagem e desmatamento.
O governo acaba de identificar e georreferenciar essa área e agora vai adotar uma série de medidas que passam por demarcação de novas terras indígenas, territórios quilombolas, unidades de conservação ambiental, reservas extrativistas e assentamentos da reforma agrária.
Essa destinação é fundamental, entre outras coisas, para poder dar escala ao programa de concessões para restauração florestal que o governo começa a implementar. Isso porque cerca de 80% do potencial de geração de créditos de carbono de reflorestamento de florestas federais degradadas está em terras não destinadas.
No dia 5 de setembro, um decreto (11.688) publicado pelo governo federal deu rumo a esta situação, com o objetivo de classificar cada tipo de área e priorizar o uso coletivo e social dessas terras e florestas. Os resultados já começaram a aparecer.
O Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) identificou áreas que serão objeto de estudos para novas demarcações de terras indígenas. Elas somam 3,8 milhões de hectares, o que equivale a 7% do território federal ainda não destinado.
A maior parte das áreas que apresentam pontos de presença indígena está concentrada no Mato Grosso, com 1,37 milhão de hectares, e no Pará, com mais 879 mil hectares. Cada hectare equivale ao tamanho de um campo de futebol. A análise cabe à Fundação Nacional do Índio (Funai), que realiza o processo de demarcação.
A destinação das áreas é analisada pela Câmara Técnica de Destinação e Regularização de Terras Públicas Federais Rurais, que é formada por membros de diversos ministérios e autarquias do governo federal.
Ao Reset, o secretário de Governança Fundiária, Desenvolvimento Territorial e Socioambiental do MDA, Moisés Savian, afirmou que a principal mudança feita pelo governo em relação às áreas não destinadas diz respeito a uma inversão na lógica de utilização dessas áreas.
“O papel da câmara técnica, do Incra e dos órgãos que a compõem é identificar essas terras e trazê-las para o Estado, georreferenciar e destinar. O que nós fizemos de diferente, agora, é que o processo de destinação vai considerar, primeiro, as políticas públicas de terra de uso coletivo ou social”, diz Savian.
Novas prioridades
Se até agora o maior objetivo era a regularização fundiária, ou seja, oficializar todas as ocupações que já existem nos locais, a prioridade passou a ser a destinação para povos originários e proteção ambiental, como a criação de novas unidades de conservação.
Com essa inversão, órgãos como o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), por exemplo, checam se há algum interesse ou estudo em andamento envolvendo determinada área. Em caso positivo, eles assumem a responsabilidade pelo caso.
Do contrário, a área pode ser destinada para regularização fundiária, priorizando pequenos ocupantes e respeitando o limite de até 2,5 mil hectares por propriedade, conforme determina a lei.
Outra mudança relevante diz respeito à regularização de áreas de floresta pública. Em territórios com vegetação nativa, está proibida qualquer ação de regularização fundiária, ou seja, ocupação humana. “O que define esse critério é a cobertura de vegetação no solo. Se houver floresta na região, não há hipótese de ocupação fundiária”, afirma Savian.
“O governo Bolsonaro havia abandonado o interesse em várias áreas florestais, nas demarcações de terras indígenas. Fizemos um estudo em todas essas glebas e recuperamos essas áreas. Agora, temos 3,8 milhões de hectares para terras indígenas que tinham simplesmente sumido.”
As florestas nativas são a maioria dos 50 milhões de hectares já aferidos pelo governo, respondendo por algo entre 65% e 70% de todo território mapeado.
Para além da possibilidade de novas terras indígenas, os estudos também identificaram 28 glebas que serão revisadas pelo MMA e que podem ser convertidas em algum tipo de unidade de conservação, como uma floresta nacional ou uma reserva extrativista, ou ainda se pode ser criada uma concessão para a iniciativa privada.
Essas glebas somam 3,7 milhões de hectares. A partir de agora, a câmara técnica passará a publicar resoluções para destinar cada parte de terra. Cada órgão toca o processo de regularização, conforme a sua necessidade, seja uma terra indígena, uma área quilombola, uma unidade de conservação ou uma concessão florestal, por meio de uma parceria com a iniciativa privada, para explorar e proteção da área a partir de um plano de manejo.
Dos 3,7 milhões de hectares que retornaram para a base de estudos do MMA, 2,5 milhões estão no Estado do Amazonas. As demais áreas se espalham por Pará, Amapá, Mato Grosso e Rondônia.
Assentamentos
As áreas federais não destinadas também receberão novos projetos de assentamento. Moisés Savian afirmou que o Incra, órgão do MDA responsável pela regularização fundiária no país, já está trabalhando em mais de cem áreas para projetos de assentamento.
“As comunidades tradicionais podem ser reconhecidas, por exemplo, dentro de uma unidade de uso sustentável, como uma reserva extrativista. Estamos falando de áreas novas, que somam um pouco menos de 1 milhão de hectares”, disse. “Está em levantamento, ainda, as demandas de terras quilombolas.”
As regras estabelecem que, nos casos em que a terra é destinada a assentamento agrário, o novo dono da terra assume um pagamento pelo terreno, um valor que, de acordo com Savian, costuma ser precificado em cerca de 10% do preço médio de mercado daquela área. “É um valor baixo, normalmente. Por isso, nossa prioridade passou a ser pensar no uso coletivo dessas áreas, para atender demandas históricas. A grande mudança é essa ordem das coisas.”
Apagão
O Incra ainda trabalha na montagem de um plano nacional de regularização fundiária. No governo Bolsonaro, foi paralisada boa parte dos processos em andamento e que poderiam favorecer pequenos produtores familiares.
“Chegamos aqui e não encontramos dados sobre regularização fundiária, não tinha informação nenhuma. Demoramos um pouco em criar a câmara técnica, porque a gente precisou começar do zero. Não tinha servidor. O governo assumiu numa condição muito precária, não teve uma transição”, comenta Moisés Savian.
A ideia, agora, é criar um centro de inteligência fundiário no MDA e no Incra, que integre informações de diferentes bancos de dados e dê acesso público a essas informações, de forma transparente.
“Será apresentado um plano nacional de regularização fundiária, contemplando as futuras áreas privadas e as de uso coletivo”, diz o secretário. “Mudou a narrativa passada, que era a de permissão geral sobre terras e florestas, com o consequente esvaziamento dos órgãos de controle. Estamos tentando mostrar que, agora, o processo mudou.”