ESG vem de berço: Do que somos capazes por dinheiro?

"O deus dinheiro" escancara a inversão de valores e a orgia da humanidade quando se fala de riqueza e posse

Capa do livro "O Deus Dinheiro", que traz a ilustração de um porco com chifres em cor de rosa, com uma aura em verde atrás.
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“Se o dinheiro é o vínculo que me liga à vida humana, que liga a sociedade a mim, que me liga à natureza e às outras pessoas, não é o dinheiro o vínculo de todos os vínculos? Não pode ele atar e desatar todos os laços?”

Gira em torno dessa pergunta O deus dinheiro, de Karl Marx e Maguma, publicado no Brasil com o selo Boitatá, divisão infantojuvenil da editora Boitempo. 

O livro chegou às prateleiras em 2018, quando se comemorou os 200 anos de nascimento do filósofo, sociólogo, historiador, economista e revolucionário alemão Karl Marx.

A fúria e a revolta pingam das palavras enquanto questionam as relações éticas que se estabelecem entre o homem, a natureza, o mercado e as (falsas) necessidades criadas para o bem viver. 

As consequências negativas da exploração dos recursos naturais e da saúde física e mental do homem são sempre nebulosas e nunca questionadas. A aparência reluz no trono, enquanto a angústia e a alienação são incessantemente alimentadas nos porões desse reino em que a engrenagem não pode parar.

Dito isso, não se acue. O tema é difícil, polêmico e cheio de contradições. Um bom lugar para começar uma conversa que deveria ser mais frequente. 

Leia esse livro com pequenos, adolescentes e jovens. Converse sobre propriedade privada (um quarto, um brinquedo, um pé de feijão que cresce no potinho de plástico). Fale sobre consumo, sobre o que se tem e o que se é, sobre profissão e identidade, sobre trabalhar e sobre servir, sobre o que é de todos — um parque ou a floresta. 

Procurem entender, juntos, o que o dinheiro tem a ver com tudo isso e como ele permeia a vida. Não é preciso queimá-lo na fogueira, nem idolatrá-lo. 

O poder das imagens

As imagens, inspiradas no conto bíblico “A Queda”, do Antigo Testamento, sugerem que tudo começou quando o homem caiu em tentação e provou o fruto proibido no Jardim do Éden — uma alusão do ilustrador ao dinheiro, central na provocação artística da obra. 

A primeira mordida desencadeou um mecanismo viciante, que desconectou o ser humano de valores essenciais e criou uma realidade paralela movida, apenas, pelo tal do dinheiro.

Marcos Guardiola Martín, o Maguma, espanhol e arquiteto de formação, inspirou-se também em “O Jardim das Delícias”, tríptico do pintor holandês Hieronymous Bosch, dos séculos XV e XVI, exposto no Museu do Prado, em Madri, onde mora. A obra conta a história do mundo e expõe, em cada um de seus três painéis, a criação, o paraíso terrestre e o inferno.

A fusão entre o texto de Marx e a arte política de Maguma criou um efeito poderoso para expor o impacto exponencial (e nocivo) do capitalismo selvagem. 

Para fazer O deus dinheiro, o ilustrador desenvolveu imagens complexas que mesclam o grotesco com o surreal e propõem situações distópicas, sem deixar de lado elementos da cultura popular e ícones da publicidade. 

Com isso, ele oferece um cenário incômodo, intrigante, apocalíptico. O porco, símbolo clássico da acumulação quando em formato de cofre, virou um deus e figura central na narrativa das imagens.

A origem

A obra foi concebida originalmente em Chennai, costa leste da Índia, a cerca de 350 quilômetros de Bangalore, pela editora independente Tara Books. Conhecida por ousar na produção de livros físicos, essa casa editorial aposta na arte e em processos artesanais, na contramão de um mercado que ameaça o objeto livro com outras plataformas de leitura. 

Define-se como um coletivo de autores, designers e artesãos dedicados à experimentação em tudo o que se refere a conteúdo, projeto e produção de livros de qualidade, sem deixar de lado um olhar crítico sobre o mundo.

O jeito Tara Books de publicar explica o que se encontra em O deus dinheiro. A obra nasceu da vontade de editar um título sobre política conectado à realidade social contemporânea. 

O artista foi a primeira peça da engrenagem (com o perdão do trocadilho com a crítica feita pelo livro). Depois de um encontro casual com a diretora da Tara Books, Gita Wolf, em um festival internacional de ilustração, Maguma foi convidado a passar dois meses imerso no universo de produção da editora e na cultura dessa cidade litorânea, colonizada por portugueses, holandeses e britânicos ao longo da história, hoje a quarta mais populosa da Índia.

Entre esse primeiro contato in loco e a publicação do livro passaram-se quase três anos. 

“O texto de Marx é muito complexo e sem uma linha argumentativa muito organizada. Ele fala de muitas coisas”, conta Maguma. “Pincei as referências à acumulação, à propriedade privada e ao dinheiro como algo que converte qualquer coisa em outra”, diz.

O jovem Marx

Os pensamentos registrados em O deus dinheiro vieram de escritos do jovem alemão ainda com 25 anos, que depois apresentaria “O Manifesto Comunista” (com Friedrich Engels) e, muito mais tarde, “O Capital”, livro mais importante do movimento socialista. 

São fragmentos incompletos, notas e argumentos soltos, que puderam ser destrinchados e reorganizados. Juntos compõem os “Manuscritos econômico-filosóficos” ou “Manuscritos de Paris”, de 1844, também publicados pela Boitempo, em que Marx expõe sem rodeios o conflito entre moral e economia e denuncia a exploração desenfreada do homem pelo capitalismo, antecipando noções, que esclareceria mais tarde, sobre mais-valia, propriedade privada e dinheiro.

“As passagens, muito mais viscerais do que reflexivas, foram escolhidas depois e montadas para acompanhar a linha narrativa das imagens”, conta Maguma, que acumula prêmios de ilustração na América Latina, Espanha e Coreia, de onde acaba de voltar, após receber pela segunda vez o prêmio Nami Concours, concurso internacional de ilustração especializado na categoria livro ilustrado. 

P.S.: Complementar ao livro, o curta de animação “Alike”, produzido na Espanha, em 2015, e muito premiado, mostra como o automatismo em relação a valores culturalmente pregados, aceitos e praticados pode nos fazer submergir em uma rotina e em uma vida sem questionamentos, sem cor e sem imaginação.