Tenho um episódio marcante na minha carreira de sustentabilidade datado de aproximadamente duas décadas atrás: descarte de efluentes fora dos padrões, causando contaminação em corpo d’água. Pode parecer corriqueiro, e ainda é, mas os fatos que o qualificaram para ficarem na minha memória não são – ou não deveriam ser.
Tratava-se de uma grande multinacional, detentora de marcas que eu apreciava. O evento não era acidental, decorria de aumento na produção sem aumento correspondente da capacidade da estação de tratamento de efluentes.
A decisão de não fazer esse investimento havia sido tomada pela alta liderança, após avaliação de risco x benefício e apetite de risco dos negócios para as questões ambientais à época. A água utilizada no processo produtivo, em grande quantidade, era captada no mesmo corpo d´água a montante do local de descarte. O corpo d´água abastecia boa parte dos negócios da região.
Como profissional com poucos anos de estrada, eu custava a acreditar na decisão. Sem contar o uso distorcido e indevido do business judgement rule, já que estávamos diante de infração administrativa, crime e dano ambiental, o que mais me pegava era a decisão de negócio, que me parecia inexplicável.
Se a empresa precisava de água em grande quantidade do mesmo corpo d´água e as demais empresas na região também descartavam nele seus efluentes, o que aconteceria se todas tomassem a mesma decisão?
Simples: sem água, sem operação, sem produtos. Aqueles negócios eram dependentes de água – recurso natural, bem ambiental, capital natural – em maior ou menor grau, mas todos eram dependentes.
O interessante é que, como afirmou o Bank for International Settlements (BIS), mais conhecido como o “banco central dos bancos centrais”, em sua publicação de 2020 “Cisne Verde”, capital natural é a base da economia; mas essa correlação que me parecia tão básica era assunto fora do radar do mundo dos negócios.
O valor da natureza
Nada como um fast-forward para 2023, quando capital natural e biodiversidade começam a ganhar relevância nas discussões do setor financeiro e de boa parte do setor privado, tendendo fortemente a se tornar o próximo trending topic. Vejamos.
Em setembro, a Força-Tarefa para Divulgação de Dados Financeiros relacionados à Natureza (TNFD) publicou recomendações para (i) tomada de ação relativa às dependências, impactos, riscos e oportunidades do capital natural e (ii) divulgação de dados financeiros relacionados a capital natural.
A inspiração foi a TCFD, que criou o padrão amplamente adotado para as divulgações climáticas. Espera-se que a TNFD ganhe a mesma relevância e naturalmente seja incorporada como diretriz para divulgação de dados relativos ao capital natural pelo sistema financeiro e setor privado de forma geral.
Nessa mesma linha da divulgação de dados, na consulta pública realizada pelo ISSB/IFRS em relação aos próximos temas de sustentabilidade que deveriam ser objeto de normas específicas para padronização de divulgação, a biodiversidade ficou na dianteira.
Como o ISSB usou a TCFD como base para a recomendação da divulgação de riscos climáticos, a TNFD provavelmente será usada como base para futuras recomendações relativas a capital natural e biodiversidade.
A medição na prática
Exemplo interessante de piloto de uso da TNFD é o recente relatório ESG publicado pelo Government Pension Investment Fund (GPIF), fundo de pensão do governo japonês (que hoje é o maior fundo de pensão do mundo).
Com base na última versão beta da TNFD, o GPIF divulgou os resultados da implementação da metodologia LEAP (localizar, avaliar, mapear e preparar) de dependência e impactos em relação a capital natural, incluindo biodiversidade, no seu portfólio.
A conclusão foi que 65% do portfólio é composto por empresas altamente dependentes de capital natural. Ou seja, capital natural é, inequivocamente, um tema relevante para assegurar resultados financeiros de longo prazo.
Também em setembro, a NGFS (Rede para Esverdeamento do Sistema Financeiro), composta por 127 bancos centrais do mundo, incluindo o Banco Central do Brasil, publicou o relatório “Riscos financeiros relacionados à natureza: enquadramento conceitual para guiar ações pelos bancos centrais e supervisores”.
As bases para esse trabalho foram simples e lógicas: assim como o capital natural é essencial para a prosperidade econômica global, a degradação da natureza afetará a estabilidade financeira global.
Em uma outra perspectiva, o olhar do mercado afiado para riscos climáticos físicos e de transição e para impactos decorrentes das operações que vêm levando à construção da governança climática e de estratégias de descarbonização abriu caminho para as discussões sobre dependências, riscos e impactos relativos ao capital natural.
Muitos dos riscos causados pela crise climática estão relacionados ao capital natural, como escassez hídrica ou disponibilidade de água com mínimos padrões de qualidade. Quando essas interdependências se tornarem visíveis no mapa de riscos dos negócios – o que deve será impulsionado com adoção dos padrões de divulgação da TNFD –, o tema chegará rapidamente à agenda da alta liderança.
A oportunidade brasileira
Num olhar mais amplo de política pública e até mesmo de geopolítica global, o Brasil ocupa posição privilegiada para liderar as discussões relativas a capital natural e biodiversidade, ou seja, a transição econômica global para bioeconomia e economia circular. Nosso país é megabiodiverso, ainda temos capital natural disponível em quantidade e qualidade.
Em dezembro próximo, assumiremos a presidência do G20. Em 2025, sediaremos a COP30. Temos um Plano de Transformação Ecológica anunciado pelo Ministério da Fazenda e um Plano de Aceleração de Crescimento com diversas diretrizes relacionadas a capital natural.
Este é o momento. Temos oportunidade única para colocar capital natural e biodiversidade no centro das discussões econômicas globais e na agenda da liderança do setor privado. Economia e sociedade só têm a ganhar.