A rota para a OCDE passa pela proteção do meio ambiente

Pela primeira vez na história, o clube mundial das boas práticas vai examinar as credenciais ambientais dos candidatos a sócios. No papel, o Brasil está bem posicionado – mas é preciso fazer cumprir as leis

A rota para a OCDE passa pela proteção do meio ambiente
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Reformas, investimentos, comércio, infraestrutura e combate à corrupção. Essas costumam ser as palavras de primeira ordem quando o objetivo é favorecer o crescimento econômico em nosso país. Servem como “mantra” nas relações com parceiros e organismos internacionais. Não mais. 

O Brasil mudou nestes últimos três anos e meio. 

E o mundo mudou ainda mais, talvez em outra direção – de 2016 para cá, o Acordo de Paris espraiou requisitos verdes nos acordos comerciais e de investimento. Sem contar o boom de novos atores que se apropriaram da agenda – de investidores a eleitores, mundo afora. 

Assim, faz sentido que o “mapa do caminho” desenhado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para adesão do Brasil como membro, lançado na semana passada, contenha as habituais palavras acima mencionadas, mas também meio ambiente, biodiversidade e mudança do clima. Tanto porque a situação do Brasil é digna de preocupação nessa seara quanto porque o Zeitgeist impõe uma “régua climática”.

Essa é a primeira vez que o clube internacional de boas práticas inclui esses temas na rota de acessão de novos membros. Nem Colômbia nem Costa Rica, ambos países ricos em natureza e que nos antecederam neste processo, foram avaliadas desta forma.

O mapa é um caminho para a OCDE atualizar sua abordagem regulatória ambiental. 

Para o Brasil, ele representa um crivo de nossas políticas e práticas públicas, principalmente segundo o Acordo de Paris.

O próximo passo do processo  será a entrega pelo Brasil de um memorando contendo sua autoavaliação sobre como cumpre com os padrões estabelecidos no âmbito da OCDE. Então, 27 comitês formados por países já membros avaliarão as políticas e práticas  do Brasil em comparação com as melhores políticas e práticas da OCDE.

Segundo análise do Instituto Talanoa de abril de 2022, conseguimos atender, ao menos no papel, a todas as decisões substantivas, recomendações e declarações existentes no âmbito da OCDE na seara ambiental. Porém a falta de implementação real das políticas públicas existentes é a grande pedra no nosso caminho.

Sobre isso, estão fincadas bandeiras verdes muito claras. O comitê de políticas ambientais vai avaliar, por exemplo, como o Brasil está em relação a “combater a impunidade dos crimes ambientais e garantir que a violência e as ameaças contra os defensores do meio ambiente sejam rigorosamente investigadas e processadas”.

Esse é um ponto bastante crítico no cenário brasileiro atual: há um nível absurdo de violência e truculência em relação a defensores do meio ambiente, que coloca o Brasil entre os países mais perigosos do mundo. 

O desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips durante uma viagem ao Vale do Javari, Amazonas, na mesma semana em que o Brasil ganhou seu roteiro de acessão à OCDE é uma triste sincronia. As investigações sobre este caso e os demais são frágeis, e reina a impunidade, alimentando o ciclo de violações dos direitos humanos e ambientais. Portanto, mesmo que o governo brasileiro tente suavizar a situação, os dados e casos falam por si.

Não há uma política de Estado que garanta o estado democrático de direito quando o assunto é meio ambiente. E sobre isso será avaliada justamente a adoção de políticas para “deter e reverter a perda de biodiversidade, desmatamento e degradação da terra, respeitando e efetivando os direitos dos povos indígenas e comunidades quilombolas” e “ a aplicação efetiva das leis ambientais, fortalecendo a capacidade das agências relevantes e garantindo a participação da sociedade civil”. 

Aqui, há pelo menos dois problemas: um crônico – vide a baixíssima aplicação do Código Florestal dez anos depois de sua revisão pelo Congresso Nacional – e outro agudo – o governo Bolsonaro paralisou, para todos os fins, o aparato de fiscalização ambiental federal e de participação social estruturada.

Mesmo que vez ou outra ocorram operações de fiscalização em campo e conversas pontuais entre membros do governo e representantes da sociedade, não há uma sistemática sólida de trabalho. E provavelmente deve pesar na avaliação o fato de que o Fundo Amazônia foi paralisado e teve seus recursos (doados por países-membros da OCDE) bloqueados a partir de 2019 justamente por causa da eliminação do comitê orientador por meio de um decreto presidencial.

O Brasil também terá de se autoavaliar e quiçá promover reformas para “garantir estratégias ambientais e climáticas eficazes e ambiciosas que demonstrem uma implementação real [da política] e sem retrocessos, incluindo o investimento na resiliência e adaptação climática como parte da agenda nacional de desenvolvimento”.

Como já comentei em colunas passadas, a redefinição da NDC (o documento em que o país expressa perante a ONU suas metas de curto prazo em relação à descarbonização) por parte do governo federal representa um retrocesso e também gera incertezas para o setor privado, dado que resulta em menor ambição climática absoluta do que metas anteriormente adotadas. 

Já o comitê de agricultura vai avaliar “se as políticas agrícolas promovem a sustentabilidade, em particular o uso sustentável da água, terra, energia, solo, recursos de biodiversidade, floresta – inclusive no que diz respeito ao desmatamento – e contribuir para soluções para as mudanças climáticas” e “se as políticas para o setor de alimentos e agricultura são coerentes com a macroeconomia geral, políticas estruturais, sociais, climáticas e outras políticas ambientais”.

Como dito acima, a principal política do setor, o Código Florestal, está sendo desperdiçada. E nenhum governo brasileiro até hoje ousou criar sistemas transparentes e robustos de rastreabilidade das cadeias de commodities agrícolas, que possam responder aos parceiros externos se as mesmas estão livres de desmatamento. Provavelmente isso aumentará em importância no contexto do Regulamento da União Europeia sobre Produtos Livres de Desmatamento e do Acordo Comercial UE-Mercosul.  

Por fim, a OCDE colocará uma lupa sobre se o Brasil vai implementar políticas alinhadas com os objetivos do Acordo de Paris  “para toda a economia” e, em particular, o objetivo de alcançar emissões líquidas globais de gases de efeito estufa zero até 2050. No mapa, destaca-se isso como princípio transversal a todos os comitês instalados e que inclui “reverter e deter a perda de biodiversidade e o desmatamento, conforme acordado durante a COP 26 em Glasgow, tomando ações efetivas para traduzir isso no chão”. Isso significa que todos os compromissos “soft” adotados em Glasgow pelo Brasil – como zerar o desmatamento até 2030 e reduzir emissões de metano em 30% no mesmo período – serão exigíveis, no contexto da OCDE.

Seria oportuno realizar uma autoavaliação nacional honesta sobre nossas credenciais verdes – vis-à-vis o histórico de políticas públicas e também em relação ao contexto da nova corrida climática. Há novas responsabilidades no horizonte e oportunidades de aprender com outras nações. Mas, dado o clima polarizado das eleições, não corremos o risco de ver isso acontecer. 

Recai sobre o governo de plantão a responsabilidade de preparar a “síntese socioambiental brasileira” e nos submeter ao escrutínio de alta precisão da OCDE. Como Jair Bolsonaro e seus ministros têm sinalizado que gostariam de cumprir essa tarefa antes das eleições de 2022, vislumbrando-a como um ativo político, é de se esperar uma avaliação autocongratulatória, voltada a exaltar os setores da base do Presidente. 

Não deixa de ser uma grande ironia: o governo que tem sacrificado nossas credenciais verdes será aquele do qual se exigirá como passaporte internacional justamente a natureza.