A empresa que derruba árvores (legalmente) na Amazônia

Visitamos a operação da suíça Mil Madeiras Preciosas, que há 30 anos explora madeiras nativas no Amazonas – um negócio complexo, minucioso e de longuíssimo prazo

Operação da Mil Madeiras Preciosas, que faz manejo sustentável na Amazônia
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Itacoatiara (AM) – O silêncio ensurdecedor da floresta é quebrado pelo som da motosserra. Depois de alguns golpes precisos, o cedrinho de 28 metros de altura e 80 anos de idade vem ao chão com um estrondo, caindo exatamente no local planejado e levantando uma nuvem de folhas.

Não se trata de mais uma extração ilegal de madeira nobre no coração da Amazônia. Mas sim de uma remoção cirurgicamente planejada, aprovada pelo governo e executada pela Mil Madeiras Preciosas.

Tida como uma das referências em manejo sustentável de mata nativa na Amazônia brasileira, a Mil está nesse negócio há 30 anos, desde que, sob influência da Eco-92, um grupo de empresários suíços fundou a Precious Woods Amazônia e resolveu investir na região.

Quando se fala em manejo de florestas, quase sempre vem à mente uma grande área plantada com eucaliptos ou pinus. Não é esse o caso aqui. O manejo sustentável de florestas nativas trata da extração de árvores com décadas de vida, por vezes centenárias, feita de forma controlada, com o objetivo de conciliar a exploração madeireira com a manutenção da floresta em pé e a regeneração do que foi retirado.

Trata-se de um negócio de ciclo longo, já que uma área manejada hoje só estará regenerada dentro de 30 a 40 anos. E é dentro deste ciclo que a Mil trabalha. 

A operação tem proporções inimagináveis. 

Só em terras próprias, a empresa tem 370 mil hectares – ou 370 mil campos de futebol. A principal estrada de terra que corta essas terras tem aproximadamente 140 quilômetros em linha reta. A empresa ainda faz a gestão de quase 200 mil hectares de áreas de terceiros, incluindo o governo estadual e a fabricante de celulose Suzano.  

“O que buscamos fazer aqui é o manejo socialmente justo, ambientalmente correto e economicamente viável”, diz João Cruz, um piauiense que trabalha desde o primeiro dia no negócio e que em 2011 assumiu como diretor da operação no Brasil. Hoje a Precious Woods tem também uma operação no Gabão e ações listadas na bolsa de valores da Suíça.

O investimento é de longuíssimo prazo. Cruz diz que o negócio só saiu do vermelho e se tornou viável economicamente a partir de 2011.

Não faltam dificuldades. Os problemas fundiários são uma regra, tentativas de invasão fazem parte da rotina. Mais recentemente, a empresa passou a ser assediada por desenvolvedoras de projetos de geração de créditos de carbono e chegou a flagrar a equipe de uma empresa de São Paulo prospectando sua área sem autorização. 

Como funciona

Embora atue em 552 mil hectares, a Mil Madeiras Preciosas explora apenas entre 11 mil a 12 mil deles por ano. Essa matemática que parece não fazer sentido é explicada pela lógica do manejo sustentável. 

“O manejo é baseado na regeneração natural”, explica Cruz (na foto, observando o arraste de uma árvore).

Cada área explorada precisa ficar intocada por 40 anos para que haja a regeneração das árvores. O território da empresa está dividido em 40 áreas de exploração. A cada ano, a Mil migra de uma para outra.

“Mas já conhecemos o inventário dos próximos 40 anos”, diz o gerente florestal da empresa, Bruno Cruz, filho de João. Isso significa que a equipe de agrônomos e engenheiros florestais fez o mapeamento de toda a extensão de terras e identificou o que pode ser extraído.

Para que o manejo seja feito da maneira adequada, tudo tem que ser aprovado pelo Ibama. A empresa envia ao órgão os dados de mapeamento de cada área e assinala exatamente quais árvores, de quais espécies e em qual localização gostaria de derrubar. Com base nas dimensões de cada árvore, calcula também qual o rendimento de madeira que pretende alcançar.

Funcionários da Mil Madeiras derrubam cedrinho

De 1995 a 2021, a Mil Madeiras recebeu autorização para extrair 6 milhões de metros cúbicos de toras. “Produzimos 53% disso e devolvemos o direito dos outros 47%”, diz Cruz.

É comum que autorizações excedentes sejam vendidas para “esquentar” madeira extraída de forma ilegal. “Hoje em dia paga-se R$ 167 por metro cúbico de autorização”, diz ele, completando que constantemente a empresa recebe propostas do tipo que são ignoradas.

A cada hectare, a empresa tem autorização para extrair 5 a 6 ‘indivíduos’, como a equipe costuma se referir às árvores. Mas, na prática, extrai 3 indivíduos. “Sem o manejo sustentável, tira-se 30 árvores com valor comercial numa área equivalente”, diz Cruz.

Ou seja, o manejo sustentável leva à extração de apenas 10% das árvores que seriam derrubadas numa extração desordenada.

“Ainda assim tem impacto na floresta? Tem. E é impossível não ter”, diz Cruz.

Mas a empresa diz aplicar ainda diversas técnicas pensadas para reduzir essa pegada. A primeira delas é o estudo minucioso de onde a árvore vai cair, para destruir a menor quantidade de vegetação possível. 

Em seguida, as toras de madeira são içadas por cabos de aço de 75 metros de extensão, numa técnica chamada de pré-arraste. O objetivo é evitar que grandes maquinários precisem transitar dentro da floresta. 

“O pré-arraste é o grande diferencial da operação para diminuir o impacto”, diz João Cruz.

Máquinas de menor porte fazem esse içamento, transitando por trilhas mais estreitas abertas no meio da mata. As toras são deixadas em clareiras maiores e só então os chamados skidders, máquinas de maior porte, entram em ação para carregá-las até os caminhões.

“Na técnica tradicional, os skidders iriam até a árvore derrubada. A cada dia, tiramos cerca de 30 árvores dentro de 10 hectares. Isso quer dizer que, no sistema que todo mundo usa, o skidder faria 30 caminhos diferentes num único dia dentro da floresta”, explica Cruz.

No modelo convencional, cerca de 12% da área explorada precisa ser aberta para o transporte das toras. “Com o içamento, o percentual cai para 3,5% a 4%”, afirma ele.

Além disso, no sistema tradicional, para cada 50 árvores extraídas, 10 “ficam no mato”, ou seja, se perdem, calcula Cruz. “Cinco por uso de técnicas incorretas, três que o motorista não encontra e duas porque foram danificadas.”

A empresa faz o monitoramento da regeneração da biodiversidade das áreas. “Depois de seis anos a microfauna está restabelecida. Após 20 anos não há diferença na biomassa e no carbono retido”, diz Cruz.

Rastreabilidade

Assim que uma árvore vai ao chão, a equipe da Mil Madeiras fixa uma plaqueta com um identificador único, que irá acompanhar a madeira por todo o ciclo de transporte e venda.

“Quando pegamos uma tora na serraria, é possível saber quando a árvore foi cortada, de qual espécie ela é, quem cortou, se ela caiu na direção planejada ou se caiu derrubando outras árvores”, diz João Cruz.

Todas as informações, tora a tora, têm que ser incluídas no Sinaflor, o Sistema Nacional de Origem dos Produtos de Florestais, do Ibama. “Antigamente só era preciso declarar o volume extraído, mas agora são as informações de cada tora individualmente.”

As árvores recebem um identificador único; neste trailer com acesso à internet, são registradas no sistema do Ibama

Só depois desse registro, feito em computadores instalados em um trailer com internet via satélite no meio da floresta, é que a madeira pode ser transportada até a serraria da própria Mil Madeiras. 

Desde 1997, toda a madeira que sai da Mil é certificada com o selo FSC, do Forest Stewardship Council, que atesta o manejo feito de forma sustentável, verificando a rastreabilidade da madeira, os serviços ecossistêmicos, como preservação dos recursos hídricos, e também o atendimento a normas trabalhistas da Organização Internacional do Trabalho.

No Brasil, o FSC tem 8,6 milhões de hectares de florestas certificadas, sendo 7,1 milhões de florestas plantadas com espécies exóticas, como pinus e eucalipto, e 1,75 milhão de florestas nativas, diz a diretora executiva da entidade no Brasil, Daniela Vilela. 

Modelo de negócio

Com um negócio intensivo em capital, por conta dos investimentos massivos em terras e do seu ciclo longo, o manejo sustentável não é trivial.

O planejamento é exaustivo e a equipe é altamente capacitada. Cada uma das quatro equipes de oito pessoas faz a derrubada de 36 árvores por dia e, para dar eficiência à operação, os funcionários ficam alojados nas instalações da empresa no meio da floresta por 15 a 22 dias direto. Alternam seis meses de trabalho nesse esquema e seis meses em casa.

Um dos principais fatores do sucesso da operação, na avalição de João Cruz, é a quantidade de espécies que a Mil Madeiras consegue manejar. 

São 48 espécies diferentes, que permitem a otimização de toda a infraestrutura montada, diluindo custos. “Conseguimos tirar mais madeira por área. Porque numa área de 10 mil hectares, as espécies não são idênticas e não estão distribuídas de forma homogênea.”

Outro segredo é a variedade de produtos. A Mil não exporta as toras brutas, mas sim diferentes cortes, com aplicações distintas e produzidos na própria serraria. “Temos mais de 40 produtos, com espessuras, larguras e comprimentos que variam, ampliando o mercado consumidor.”

Os carros-chefe de vendas são as peças usadas na construção de decks e seus suportes. Os principais destinos são Estados Unidos e Europa, com quase 50% das vendas cada um, China, com quase 3%, e África do Sul, com menos de 1%.  

No primeiro semestre de 2023, a Precious Woods Amazon teve receita líquida de 8,4 milhões de euros, 4,3% menor que no mesmo período de 2022, e ebitda de 1,1 milhão de euros, também em queda.

O mercado atravessa uma crise de queda de demanda, diz Cruz, motivada pela disparada do preço do frete internacional, primeiro com a pandemia, e depois com a guerra na Ucrânia. “O estoque está alto. Nossas vendas caíram de uma média de 130 contêineres por mês para 70.” 

Com isso, a empresa teve que dispensar 200 dos seus 800 funcionários. A expectativa é de retomada das exportações no segundo bimestre de 2024.

A empresa também está perdendo uma importante receita na operação brasileira. 

Para aproveitar os cavacos de madeira que sobram da sua serraria, foi construída uma termelétrica a vapor gerado pela queima da biomassa ao lado da planta. 

A termelétrica que opera com resíduos da serraria fornecia eletricidade para o município de Itacoatiara

Além de fornecer eletricidade para as próprias operações, durante 22 anos a usina abasteceu a cidade de Itacoatiara, substituindo de forma limpa a geração a biodiesel. Mas agora o município começou a ser conectado ao Sistema Interligado Nacional de Energia, recebendo a eletricidade da hidrelétrica de Tucuruí. “Era um ótimo negócio”, diz João Cruz.

Uma nova frente de receita poderá vir, no futuro, da geração de créditos de carbono. Embora exista controvérsia sobre a contribuição climática do manejo florestal sustentável, a empresa acaba de fechar um contrato com a desenvolvedora de projetos de carbono BR Carbon para um estudo de viabilidade.    

João Cruz também acredita que a empresa pode contribuir para pesquisas na Amazônia. “Nós temos um enorme banco de dados disponível, com um inventário de 100% da biodiversidade encontrada nas terras da empresa.”

* A jornalista viajou a convite do FSC