AGRONEGÓCIO

Plano de descarbonização põe o agro em pé de guerra com o governo. Entenda

Proposta coloca em risco a imagem do setor perante o mundo, dizem entidades e especialistas; lobby intenso pede mudanças e adiamento da aprovação do plano

Colheitadeiras em campo de soja no Mato Grosso

Veja o resumo da noticia

  • Agronegócio diz que plano é autossabotagem e coloca em risco imagem do setor
  • Proposta recebe críticas de entidades setoriais e de especialistas
  • Plano não garantiria contabilização das remoções de carbono e teria pouca transparência
  • Governo admite problemas, mas pretende aprovar plano antes da COP30
  • Lobby diz que sem mudanças país pode aparecer rachado na conferência de Belém

O governo divulgou há pouco mais de um mês como sete setores terão de contribuir para que o país alcance as metas de descarbonização apresentadas à ONU, as chamadas NDCs.

Já se sabia que a responsabilidade pelo desmatamento em áreas privadas ficaria na conta do agronegócio. Mas o detalhamento do Plano Agricultura e Pecuária abriu uma nova frente da crise política com o lobby do campo.

Organizações setoriais classificam a proposta de “autossabotagem” e dizem que ela dá munição para os países que queiram justificar suas políticas protecionistas contra as commodities brasileiras.

As críticas não vêm apenas daqueles que historicamente costumam dar pouca importância para questões ambientais ou climáticas.

Especialistas de ONGs e consultorias especializadas também apontam problemas fundamentais no documento. Um consultor disse ao Reset que jamais imaginaria estar do mesmo lado de algumas das vozes mais conservadoras do agro.  

 

As queixas do agronegócio

A movimentação tem sido intensa nos bastidores nos últimos dias. Entidades do setor querem mudanças no que foi apresentado, nem que isso implique em atraso no calendário previsto.

O cronograma original, que o governo afirma estar mantido, é decidir ainda este mês quais dos cerca de 2.000 comentários recebidos nos sete planos setoriais serão acatados. No plano do agro foram pouco mais de 400 contribuições.

A versão final do documento segue então para a aprovação dos secretários dos ministérios envolvidos e, depois, é submetida ao Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima, composto pelos ministros.

A expectativa é que isso ocorra em outubro, antes do início da COP30, que começa em 10 de novembro, em Belém. Mas o país não tem a obrigação de apresentar na conferência como pretende cumprir o que prometeu em sua NDC, o plano nacional de descarbonização.

Se não houver alterações no que está na mesa, representantes do setor afirmam que o país vai se apresentar ao mundo “rachado” em agricultura e desmatamento, duas áreas que juntas representaram 72% de todas as emissões de gases estufa do país, segundo os dados mais recentes disponíveis da plataforma SEEG, de 2023.

O ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, enviado especial da conferência para o setor, ameaçou renunciar à posição caso o plano seja aprovado na forma atual, segundo apurou a reportagem.

Na última semana, ouvimos as principais críticas feitas ao plano de agricultura e pecuária. Todos os entrevistados contribuíram na construção do plano e pediram que seus nomes não fossem revelados para falar abertamente.

O Reset também ouviu Aloisio Melo, secretário nacional de Mudança do Clima, órgão do Ministério do Meio Ambiente (MMA), e Roberto Schaeffer, da COPPE/UFRJ, autor do modelo matemático em que se baseiam as ações propostas.

Veja abaixo os pontos mais controversos do plano e as respostas do governo.

A origem da crise

O marco zero da disputa é a decisão do governo brasileiro de usar uma categorização interna diferente da usada por padrão na contabilidade do Acordo de Paris.

As NDCs alocam os gases de efeito estufa em cinco áreas: agricultura, energia, processos industriais, resíduos e mudança do uso da terra. Segundo este critério, todo o desmatamento entra nesta última.

O Plano Clima traduz na prática e internamente o número global com que o Brasil se comprometeu. Para isso, optou-se por outra forma de organização.

As emissões decorrentes da perda de vegetação nativa foram colocadas em dois planos setoriais. Quando acontecem em terras públicas, fazem parte do Plano de Conservação da Natureza. As demais ficam no de Agricultura e Pecuária.

Isso em si não é um problema: desde que a prestação de contas obedeça ao padrão das NDCs, cada país pode decidir como distribuir internamente as responsabilidades.

A escolha foi justificada dizendo que o plano é de implementação. “Ele precisa estar organizado conforme as responsabilidades e quem tem os instrumentos na mão”, diz Melo, em referência aos respectivos ministérios e órgãos governamentais.

“Isso deixa mais claras as responsabilidades, quem tem que fazer o quê. O ponto de partida é quem tem as políticas, as regulações, os recursos para motivar aquelas ações.”

Ônus, sem o bônus

De acordo com o mais recente inventário nacional, as emissões decorrentes da atividade agropecuária lançaram na atmosfera 622 milhões de toneladas de CO2 equivalente. Se fosse um país, o agro brasileiro estaria entre os dez maiores emissores do mundo.

Esse total inclui o metano gerado na digestão dos bovinos, de longe o maior problema, o uso de fertilizantes, dejetos animais e a decomposição de matéria orgânica.

A alocação do desmatamento proposta no Plano de Agricultura e Pecuária acrescenta outras 813 milhões de toneladas de CO2 equivalente. O uso de combustíveis fósseis adiciona outras 21 milhões de toneladas.

Nesse novo desenho, o setor agropecuário teria de reduzir suas emissões em 36% até 2030 e de 50% a 54% até 2035. Se as reduções forem alcançadas, as projeções indicam que o impacto climático diretamente ligado às atividades no campo devem se manter estáveis mesmo com o crescimento da produção e da economia do país.

O ônus adicional de colocar o desmatamento na conta deveria ser compensado por um bônus: a conta do setor poderia incluir o carbono capturado no solo, com o uso de práticas mais sustentáveis, e nas áreas de vegetação preservadas. 

A premissa é que o agro não só emite, mas também remove gases de efeito estufa, resultando num balanço não tão negativo ou, a depender da quantidade de captura, até positivo.

Mas é aí que residem as críticas mais contundentes. O cálculo dessas remoções é falho na versão atual do inventário nacional de gases do efeito estufa, algo reconhecido pelo governo.

E faltam detalhes para garantir que essas remoções de carbono serão contadas. “Na forma atual, o único jeito de atingir a meta indicada é reduzindo o desmatamento”, afirmou uma especialista. Ou seja, todo o impacto positivo que a agropecuária pode ter com o uso de técnicas sustentáveis ou proteção dos biomas, seria desprezado.

Falta de detalhamento sobre as remoções de carbono

O documento não aponta claramente de onde virão as remoções de carbono que poderiam contribuir para o setor atingir suas metas.

“Só mencionam o Plano ABC+ (agricultura de baixo carbono). Desse jeito não tenho garantias de que elas serão contabilizadas, nem como”, afirma um especialista que estuda o impacto climático do setor.

O problema já existe hoje e é reconhecido pelo governo. As remoções não são contadas de forma adequada no inventário nacional de emissões, diz Aloiso Melo.

“Precisamos saber os fatores de emissão. Usando essa tecnologia, nessas condições, o carbono sequestrado pelo solo aumenta de tanto para tanto. Onde estão sendo adotadas essas práticas? A gente precisa disso para que o inventário reflita melhor [a realidade]”, afirma Melo.

Uma nova versão dessa contabilidade nacional de carbono, prevista para o ano que vem, deve incluir melhorias. Mas esses números mais apurados não serão refletidos na versão atual do plano.

Falta de transparência sobre os dados usados na modelagem

As ações indicadas nos planos de mitigação são resultado de um modelo matemático desenvolvido na COPPE, um centro de pesquisas da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Houve críticas a uma suposta falta de transparência dos dados que alimentaram o modelo, chamado Blues. Roberto Schaeffer, líder da equipe que desenvolveu o Blues, afirma que não se trata de algo tão simples.

“O sistema considera mais de 1 milhão de informações. Não tenho como extrair todas. Se quiserem algo específico, como o custo de produção da soja no Nordeste, eu posso conseguir.”

Ele diz que esse tipo de pedido nunca foi feito, e que o orçamento disponível não permitiria esse trabalho adicional. A modelagem foi financiada com recursos da União Europeia. O dinheiro mal foi suficiente para cobrir os custos, segundo Schaeffer. “A gente teve que trabalhar de graça.”

Sobre um potencial conflito de interesses entre os financiadores e o Plano Clima, o pesquisador diz não ter havido nenhuma interferência dos europeus. Melo, do MMA, afirma que trata-se de uma cooperação técnica como tantas outras.

A questão fundiária

Outro foco das críticas é de natureza fundiária. Todas as emissões do desmatamento em propriedades voltadas à produção agropecuária fazem parte do plano.  Isso quer dizer que não apenas fazendas privadas foram computadas, mas também áreas coletivas, como territórios quilombolas e assentamentos.  

Os critérios fundiários devem ser qualificados, segundo nota da Sociedade Rural Brasileira. “A responsabilidade pelo desmatamento em assentamentos rurais deve ser atribuída a planos específicos de conservação, dado que a terra é pública.”

Outro aspecto que recebeu críticas é o fato de o plano basear a inclusão das terras no plano da agropecuária em dados não-oficiais. Foram utilizadas informações do MapBiomas, um centro de estudos independente. Melo, do MMA, afirma que essa fonte será substituída.

“A decisão foi usar a melhor informação disponível. Isso sempre foi dito, é um processo de aprimoramento. Agora temos uma abordagem metodológica que se baseia em dados oficiais e que será aplicada já nessa próxima versão [que incorpora a consulta pública], diz o secretário.

Ainda assim, a regularização fundiária é um problema conhecido e “pode ser considerada de baixa efetividade e alcance”, afirma nota da Coalizão Brasil Clima Florestas e Agricultura, uma entidade composta por cientistas, sociedade civil e setor privado.

As incertezas podem resultar em insegurança jurídica, diz a Coalizão. Somente 3,3% dos Cadastros Ambientais Rurais (CAR) tiveram a análise concluída. 

Como pagar a conta

Também por causa das deficiências do inventário, o carbono sequestrado por áreas de proteção permanente ou por reservas legais (aquelas que por lei não podem ser desmatadas) dentro das propriedades rurais não é computado como “crédito” no saldo de carbono do setor.

O agronegócio também se queixa da ausência de instrumentos legais que compensem o produtor que deixe de suprimir vegetação mesmo tendo o direito de fazê-lo.

Quanto custam e como serão financiadas as práticas para transformar a agropecuária também é uma omissão do documento, afirma um crítico do programa que não é ligado ao agronegócio.

“Falam em Plano Safra, tem o RenovAgro, tem isso, tem aquilo. Ótimo, precisa trazer todas as políticas que existem. Mas não tem avaliação do custo. E aí citam uma Estratégia Transversal de Meios de Implementação.”

Este é o componente que trata da mobilização de recursos para viabilizar as metas de adaptação climática e mitigação do Plano Clima. Mas esse documento só deve ser submetido a consulta pública em novembro, segundo o MMA.

“Justamente na hora do faz me rir dizem que ‘vai ser feito’. Já ouvi que essa parte [dos meios de implementação] pode ficar para o ano que vem. Precisa ter tudo para aprovar um plano que vai orientar a próxima década da descarbonização do país”, diz a mesma pessoa.

A imagem do agronegócio brasileiro

Ao colocar parte da conta do desmatamento sobre o setor privado, o Plano Clima estaria dando um tiro no pé.

Um documento da Frente Parlamentar do Agronegócio (FPA) lista alguns talking points para unificar a mensagem. Um deles: “O agro é parte da solução climática, mas o Plano Clima o trata como culpado”.

A sensação é compartilhada por especialistas que costumam discordar frontalmente da FPA.

“Imagine que eu sou uma instituição financeira internacional. O Brasil está buscando dinheiro para recuperar pastagem. ‘Pô, 70% das emissões do Brasil são da agropecuária. Não vou apostar minhas fichas nesse negócio’”, diz um consultor especializado em agronegócio.

Melo afirma que os Ministérios da Agricultura (MAPA) e Pecuária e Desenvolvimento Agrário estiveram envolvidos desde o início.

“Houve muito diálogo ao longo do processo. Os parâmetros que orientaram os cenários foram fornecidos pelo MAPA. Tudo foi discutido e validado pelos órgão governamentais. Idem para o resultado do modelo. Houve umas duas reuniões com entidades do agro, levando a equipe de modelagem”, diz o secretário.

“O mapa conduziu como achou que deveria conduzir, talvez não tenha sido suficiente, não tenha feito as interlocuções necessárias.”

Uma pessoa com ótimo trânsito pelo setor e pelos corredores de Brasília pelo Reset atribuiu parte da responsabilidade ao Ministério da Agricultura. Teria havido uma falta de envolvimento da pasta, aliada ao desejo de parte do MMA de jogar mais responsabilidades sobre o setor.

* Colaborou Vanessa Adachi