ANÁLISE

Por que o plano de descarbonização do Brasil vai muito além da COP

Meta nacional entregue à ONU vai nortear políticas setoriais e tem repercussões em toda a economia brasileira

Por que o plano de descarbonização do Brasil vai muito além da COP
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O governo brasileiro apresentou nesta quarta-feira (foto) a versão integral de seu plano nacional de descarbonização, uma das obrigações do país perante o Acordo de Paris.

Os números principais eram conhecidos desde a última sexta: corte de 59% a 67% nas emissões de gases de efeito estufa até 2035, na comparação com os níveis de 2005. Como outros signatários de Paris, o Brasil se compromete a ser neutro em carbono em 2050.

Os percentuais de redução têm implicações importantes para a luta contra a mudança do clima e para as aspirações brasileiras de liderança na diplomacia climática internacional – no ano que vem o Brasil preside a COP30, em Belém do Pará.

Mas os efeitos da NDC vão muito além das Conferências do Clima da ONU. Eles se refletirão por toda a economia brasileira, incluindo o mercado de carbono, políticas de financiamento agrícola e ações que preparem o país para eventos climáticos extremos.

A decisão de expressar o corte de emissões em uma faixa abre a possibilidade de que o Brasil seja exportador no mercado internacional de carbono da ONU – que ainda não está em funcionamento.

A contribuição nacionalmente determinada, nome oficial do plano, vai servir de norte para 7 estratégias setoriais e 16 relativas à adaptação climática. Reunidas no Plano Clima, elas podem ser comparadas a uma estratégia net zero de uma empresa corporativa.

Ela também se apoia em várias iniciativas e leis recentemente aprovadas, como a do Combustível do Futuro, o programa Mover, as medidas de atração de capital privado internacional do Eco Invest e o Plano de Recuperação da Vegetação Nativa e, é claro, o esforço para combater o desmatamento, de longe a maior fonte do carbono que o Brasil lança na atmosfera.

“A NDC é um plano de negócios do Brasil”, diz Caroline Prolo, responsável pelo stewardship climático da gestora Fama Re.capital, advogada especializada em política de clima e colunista do Reset. “Quando o governo comunica esse seu ‘orçamento de carbono’, está mandando um sinal para o mercado investir na transição para uma economia que deixe os combustíveis fósseis no passado.”

O documento também assume pela primeira vez o compromisso de se afastar dos combustíveis fósseis, decidido na COP do ano passado. Mas isso se refere ao consumo interno. 

É possível – provável – que a Petrobras abra novas áreas de produção de petróleo, que será refinado e queimado além das nossas fronteiras. Esse carbono não entra na conta nacional, mas vai para a atmosfera do mesmo jeito.

Abaixo, analisamos os principais pontos da NDC brasileira. Por enquanto, ela é somente um documento de 44 páginas em inglês depositado no registro online da Convenção do Clima. O desafio, agora, será cumprir o que foi colocado no papel.

A banda vai passar

Em números absolutos, o Brasil se compromete a limitar suas emissões a uma faixa que vai de 850 milhões a 1,05 bilhão de toneladas de carbono equivalente em 2035.

“A volatilidade, a incerteza, a complexidade e a ambiguidade no desenho de cenários futuros” são apresentados como justificativa pela opção de não fixar um único número.

Mas existe outra explicação que talvez tenha sido decisiva – e que é mencionada no texto. Caso o país supere o piso dessa banda de reduções, o excedente poderia ser comercializado com outros países ou no mercado internacional de carbono, ambos mecanismos previstos no Acordo de Paris (mas ainda não completamente regulamentados).

Eis uma situação hipotética. O Brasil emite 950 milhões de toneladas no prazo alvo. As 100 milhões que ficam acima do limiar inferior poderiam ser objeto de uma arbitragem de preço. Seguindo o exercício mental, se a tonelada valer US$ 100 internacionalmente e o custo de reduzi-la domesticamente seja de US$ 20, a transação faria sentido econômico – sem, em tese, prejudicar a entrega de reduções prometidas.

Seria uma “oportunidade de atrair investimentos oportunos e de grande escala em atividades e novas tecnologias com custos significativos de abatimento e de oportunidade”, diz a NDC.

Integrantes do governo brasileiro afirmam que esse potencial comercial do carbono é um motivo secundário para a banda – mesmo porque não existe nenhuma garantia de que o mercado da ONU vá funcionar como se espera, que dizer de preços.

Natalie Unterstell, presidente do centro de estudos climáticos Talanoa e colunista do Reset, considera a opção pela faixa um dos calcanhares de Aquiles da NDC. “Não é uma bandinha. É uma Venezuela, uma Argentina em termos de emissões.”

“O esforço de mitigação necessário é muito diferente para ambos os cenários, portanto, a gama de políticas a serem implementadas daqui para frente variará de acordo com a meta escolhida”, diz uma análise técnica do Observatório do Clima, uma rede de mais de cem ONGs ambientais brasileiras.

A posição oficial do país é que todos os esforços serão realizados para que se atinja o teto da meta.

“A ideia de uma banda é tão somente para ter um processo que assimile possíveis variações, como nós temos com a inflação”, afirmou a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente. “O objetivo não é usar a banda para se acomodar naquilo que é menos, a banda é tão somente para dar suporte para alcançarmos mais.”

Desmatamento zero… mas qual?

A principal contribuição que o país tem a dar ao esforço global pelo clima é conter o desmatamento.

Pelo menos três pessoas confirmaram para o Reset ter visto versões preliminares da NDC que mencionavam um compromisso de zerar também o desmatamento legal, mas a versão final excluiu essa qualificação – o documento não poderia incluir promessas que contrariam o que dizem as leis do país.

Além dos mecanismos de combate à devastação ilegal, o texto destaca os esforços de recuperação da vegetação nativa em larga escala, como o Planaveg. Todas essas iniciativas podem ser apoiadas por “pagamentos por serviços ambientais, mercados de carbono e outros instrumentos econômicos”.

A expansão da agropecuária, um dos principais vetores da devastação dos biomas, deve acontecer com a recuperação de pastagens degradadas e ganhos de produtividade.

Um plano de negócios

Um dos pontos destacados pelos analistas foi a inclusão do compromisso de uma transição que se afaste dos combustíveis fósseis.

A NDC faz referências ao crescimento no uso de biocombustíveis e à eletrificação. Também há menções ao desenvolvimento de hidrogênio de baixo carbono, soluções de captura e armazenamento de CO2 e a “viabilização de tecnologias avançadas para a remoção [do gás] da atmosfera”.

O documento delineia as várias vantagens competitivas do país em fontes limpas de energia e eletricidade e como elas serão um motor de descarbonização para a economia.

Em nenhum lugar, entretanto, o documento menciona a produção de petróleo. Com as reservas da Margem Equatorial, a ambição da Petrobras é figurar entre as cinco maiores petrolíferas do mundo.

Esse objetivo vai de encontro à responsabilidade do país como anfitrião da próxima COP, diz em nota Ricardo Baitelo, do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA).  O país deveria liderar pelo exemplo. “Isso significaria sinalizar uma redução na produção e no consumo de petróleo e gás natural na próxima década, com vistas à descontinuação até 2050”, afirma ele.

De qualquer maneira, a NDC, e as iniciativas oficiais – incluindo as obrigações estabelecidas pelo mercado regulado de carbono – são claras indicações para os negócios. A velocidade pode variar, mas o sentido é um só: rumo a uma economia de baixo carbono.

No texto, essa nova visão de desenvolvimento é descrita como “um novo paradigma de prosperidade econômica”.

Quantos graus, afinal de contas?

A NDC tem repercussões internas importantes, mas sua principal função é apresentar o compromisso brasileiro perante o mundo. Mais que isso, o país se auto impôs a missão de desenhar uma estratégia que coloque o planeta no caminho de estabilizar o aquecimento global em 1,5°C em comparação com o período pré-industrial.

O texto diz que as metas brasileiras são compatíveis com esse objetivo, de acordo com o modelo Blues (Brazil Land-Use and Energy System), desenvolvido por pesquisadores da COPPE/UFRJ. Os cortes-alvo representam a opção de melhor custo-efetividade, segundo a NDC.

A metodologia escolhida é apenas uma entre várias aprovadas pelo IPCC, painel internacional de cientistas que subsidia tecnicamente a Convenção do Clima da ONU. Em outras palavras, não existe uma régua universalmente aceita para fazer o diagnóstico da adesão ao 1,5°C.

“O governo brasileiro não forneceu informações sobre as emissões de base para o modelo” que utilizou, diz em nota o Observatório do Clima.

A entidade argumenta que o país poderia ter ido além do prometido. Usando os mesmos critérios básicos da NDC brasileira e uma abordagem conhecida como “participação justa” dos países signatários de Paris, o OC estima que a meta nacional deveria ser um máximo de 375 milhões de toneladas em 2035, ou seja, bem mais rigorosa.

O consórcio de cientistas independentes Climate Action Tracker chegou a um resultado parecido: 368 milhões de toneladas.

“Estamos falando de algo parecido com modelagens econômicas”, diz Alexandre Prado, responsável pela área de mudanças climáticas do WWF-Brasil. “Cada uma parte de premissas diferentes e portanto chegam a resultados diferentes.”

Trata-se de uma discussão acadêmica, é claro, se não forem tomadas todas as medidas necessárias para atingir os objetivos descritos.

Uma outra dimensão da NDC é política: como presidente da COP30, o Brasil se uniu a Azerbaijão (CO29) e Emirados Árabes Unidos (COP28) na chamada troika. Um dos objetivos do grupo é publicar as metas antecipadamente e em linha com 1,5°C para “liderar pelo exemplo”.

Os quase 200 integrantes do Acordo de Paris terão de entregar suas NCDs até fevereiro (embora atrasos sejam frequentes). O nível coletivo da ambição será uma das medidas do sucesso da diplomacia brasileira.

O que são as NDCs

O Acordo de Paris, firmado em 2015, criou as contribuições nacionalmente determinadas (NDCs) como uma maneira de acompanhar o progresso da cooperação global e incentivar um aumento gradual dos cortes de emissões de cada país.

É importante entender o que elas significam na prática. Todos os países que fazem parte de Paris concordaram com a obrigação de entregá-las – e as exigências basicamente param por aí.

O princípio da soberania nacional tem precedência sobre as organizações multilaterais. Nenhum país pode ser obrigado a fazer a transição para economias de baixo carbono, mesmo que tenham se comprometido com o net zero até 2050.

Na ausência de punições para quem não entrega o que prometeu, o que resta é o constrangimento, uma ferramenta usada por muitos tratados internacionais para que suas disposições sejam cumpridas.

Tampouco existe um formato padrão ou uma lista de caixinhas que cada NDC precisa ‘ticar’ para ser aceita. Elas devem conter no mínimo as medidas de reduções de emissões – ou mitigação, no linguajar das COPs – planejadas.

Um país pode ser extremamente sucinto, apontando pouco mais que um número alvo. Ou então pode escolher reportar para a ONU o que pretende fazer somente em um setor da economia – mudanças na matriz energética, por exemplo.

As NDCs não precisam nem sequer cobrir todos os gases que causam o efeito estufa. Estima-se que o metano seja responsável por algo como 30% do aumento da temperatura registrado nos últimos 250 anos. Mas um país pode simplesmente decidir ignorar vazamentos em seus gasodutos ou as emissões de seu rebanho bovino na estratégia nacional submetida à ONU.

A NDC brasileira contempla toda a economia. Metade das emissões do país – causadas pelo desmatamento – não tem relação direta com o PIB. Isso é uma vantagem relativa: reduzi-las custa muito menos e pode ser muito mais rápido que substituir usinas que queimam combustíveis fósseis por fontes limpas de energia.

Por outro lado, o sucesso no controle da devastação da natureza significa que a participação dos outros setores nas emissões aumenta proporcionalmente. Por essa razão, a aprovação da lei do mercado regulado de carbono, que vai instituir limites obrigatórios para os setores mais poluentes, é importante para o plano nacional.

Imperfeito, mas possível

O sistema estabelecido pelo Acordo de Paris é imperfeito, mas é o possível em um processo que exige a concordância de todas as partes para que decisões sejam aprovadas.

O conjunto das NDCs também representa uma indicação do que o mundo quer fazer – já que não existem garantias de que elas serão cumpridas. O retrato da rodada atual, que cobre o período até 2030, é preocupante.

A ONU divulgou uma síntese há um ano, contabilizando os planos de 195 partes da Convenção do Clima, ou 94,9% de todas as emissões mundiais. Caso todas sejam implementadas na íntegra, a redução do carbono na atmosfera em 2030 seria da ordem de 5,3%.

A ciência diz que, para manter o aumento da temperatura em 1,5°C, o corte deveria ser de 43% no fim desta década.