Investigação aponta furos em certificação de algodão brasileiro usado por Zara e H&M

Selos da Better Cotton e da Abrapa têm rastreabilidade frágil e escondem problemas na cadeia produtiva, diz ONG britânica Earthsight

Máquina colhe algodão em campo em São Desidério, na Bahia
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Uma investigação recém-publicada joga luz sobre as falhas no rastreio na cadeia do algodão e sobre a confiança de gigantes da fast fashion em certificações com exigências frágeis e insuficientes para garantir melhores práticas ambientais e sociais. O tema interessa especialmente ao Brasil, que pode ultrapassar os Estados Unidos neste ano e se tornar o maior exportador de algodão do mundo. 

Após um ano de trabalho, a ONG londrina Earthsight acaba de publicar o relatório ‘Fashion Crimes’, no qual alega que o algodão vendido por duas das maiores varejistas de roupas do mundo – H&M e Inditex, dona da Zara – está vinculado a desmatamento, apropriação de terras, abusos de direitos humanos e conflitos violentos. A pesquisa foca em fazendas do Grupo Horita e SLC Agrícola no Cerrado baiano e, em muitos aspectos, não consegue fechar completamente os argumentos que embasam a acusação. Vários pontos levantados são contestados pelas empresas (veja abaixo).

Independentemente dos casos, o mais relevante é que o relatório traz à tona uma realidade do agronegócio no bioma responsável por abrigar a maior parte do algodão plantado em escala industrial no país e também as falhas na metodologia da iniciativa Better Cotton (BCI).

A certificadora atua em mais de 20 países e alcança uma rede de 2,2 milhões de agricultores parceiros. Na última safra, um quinto do algodão mundial – 5,4 milhões de toneladas – levou o selo da iniciativa. 

A Better Cotton é alvo de críticas por chegar apenas até o país onde o algodão é cultivado, sem rastrear a cadeia completa. “Ainda assim, essas grandes varejistas de moda usam o sistema como prova de sustentabilidade de sua matéria-prima. Na verdade, elas próprias deveriam fazer essa verificação”, diz Rubens Carvalho, diretor-adjunto da Earthsight, ao Reset

Mas, no algodão e em outras culturas que o Brasil exporta – como soja e carne bovina –, regulações comerciais, além da pressão crescente de investidores e consumidores, vão exigir transparência completa desses produtos.

Zoom no Brasil

O Brasil é o maior produtor dentro da Better Cotton, responsável por 42% do volume global, e tem 84% de suas grandes fazendas certificadas. 

Um conflito de interesses marca a distribuição do selo no país: na prática, os próprios produtores são responsáveis por dizer se seu algodão é ou não certificado, mostra a Earthsight. 

A Better Cotton trabalha em parceria com o programa Algodão Brasileiro Responsável (ABR), da Associação Brasileira de Produtores de Algodão (Abrapa). Quem atende aos critérios de um já cumpre também com os do outro.

Auditores terceiros que emitem um relatório com o parecer para a adesão ao ABR são contratados pelo setor cotonicultor. 

“Essa é uma prática que ocorre em outros setores também, como o da madeira, em que os auditores que fazem as vistorias são pagos pelas próprias empresas que buscam a certificação”, diz Carvalho. Segundo a Earthsight, a Abrapa foi incapaz de mostrar como garante a independência desses auditores. 

A associação respondeu, em comunicado emitido ontem, que não emite certificados de sustentabilidade nem verifica o atendimento aos critérios do ABR. “Todas as auditorias e certificações, nesses programas, são realizadas por meio de inspeções anuais no local por empresas de auditoria terceirizadas independentes que têm total liberdade para negar a certificação a fazendas que não atendem aos requisitos internacionais”, afirma o documento. 

Em carta enviada à Earthsight, a associação também afirma que vai estabelecer procedimentos para melhorar o protocolo ABR e, em caso de ações judiciais, irá apoiar integralmente os produtores. 

Carvalho afirma ainda que as informações disponibilizadas pela Abrapa, Better Cotton, Grupo Horita e SLC divergem entre si sobre quais fazendas possuem a certificação. “As entidades que deveriam estar controlando isso não conseguem se pôr de acordo. Como o mercado global vai ter confiança no que realmente é certificado se nem elas parecem ter clareza sobre isso?”

Atalhos

As marcas consideram a cadeia produtiva uma externalidade e terceirizam os problemas, diz Beto Bina, fundador da Farfarm, consultoria especializada em cadeias produtivas agroecológicas. 

O algodão exportado por produtores brasileiros tipicamente vai para fábricas no Sudeste Asiático, que são contratadas pelas marcas globais para confeccionar as peças.

“As marcas de roupas são cúmplices da agricultura. Hoje, elas deixam os desafios para a indústria responsável pela matéria-prima, pedem uma certificação e lavam as mãos”, diz Bina. “É conveniente encontrar atalhos.” 

O algodão é uma das culturas reconhecidas pelo alto impacto ambiental e social, com modelos de monocultura e concentração de terras. Só no Oeste baiano, onde ficam as fazendas de onde sai o algodão usado em meias da H&M e jeans da Zara, o agronegócio é responsável por consumir 2 bilhões de litros de água por ano e despejar 600 milhões de litros de pesticida, segundo análise da Earthsight. 

“As empresas que têm cadeias produtivas sólidas são as que acham maneiras de acompanhar o trajeto dos seus insumos e que têm profissionais no campo, conversando com os produtores”, afirma Bina. 

Antes mesmo da publicação do relatório da Earthsight, a Inditex enviou uma carta ao CEO da Better Cotton, Alan McClay, pedindo esclarecimentos sobre as alegações. “A confiança que depositamos em processos desenvolvidos por organizações independentes como a sua é fundamental para as nossas estratégias de controle da cadeia de suprimentos”, disse a empresa, segundo reportagem da Modaes, publicação espanhola especializada em negócios da moda. 

A H&M tem 4.400 lojas ao redor do mundo. Zara e outras marcas da Inditex – Pull&Bear, Bershka, Massimo Dutti, Stradivarius – têm outras 6 mil. Juntas, elas faturaram US$ 41 bilhões em 2022. 

“O que está faltando é realmente vontade dessas empresas de implementar melhores sistemas de monitoramento que cumpram com a due diligence, porque isso certamente já é possível e é urgente”, diz Carvalho. “Nós somos uma ONG com 12 pessoas e fizemos esse trabalho em um ano”.

A resposta das empresas

A Earthsight manteve contato com todas as empresas envolvidas na investigação, e o material divulgado online inclui as respostas detalhadas.

A H&M disse estar em contato próximo com a BCI. “Acreditamos que certificações são uma ferramenta importante para auxiliar a adoção de melhores práticas em fazendas, promover transparência e exigir responsabilidade. (…) Apesar dos melhores esforços dos elaboradores da certificação, violações ainda podem acontecer”, escreveu em carta enviada em setembro. 

Já a Inditex ressaltou que as companhias têxteis com que trabalha compram algodão de negociadores intermediários e que o algodão brasileiro certificado pela BCI representa entre 5% e 25% da matéria-prima. “Como a sustentabilidade é um trabalho em andamento, colaboramos continuamente com organizações certificadoras e outros terceiros especializados para melhorar a qualidade desses padrões, seus requisitos, suas ferramentas de rastreabilidade e políticas de conformidade”, disse a empresa. 

O Reset procurou os dois grupos brasileiros produtores de algodão mencionados no relatório. O Grupo Horita não havia respondido à solicitação de comentário até a publicação desta reportagem.

A SLC negou ponto a ponto as acusações contidas no relatório, incluindo a suposta grilagem de terras e incêndios para abertura de novas áreas de plantio. A resposta completa está neste link.
Depois que as acusações vieram a público, a Better Cotton comunicou que está conduzindo uma auditoria independente das três fazendas do Grupo Horita e SLC Agrícola dadas as  “alegações preocupantes” feitas pela Earthsight. Um resumo do resultado será posteriormente compartilhado com os membros da iniciativa e com a ONG, diz a BCI em nota.