AMAZÔNIA

Cade escala queda de braço em torno da moratória da soja. Entenda

Associações de produtores fizeram ofensivas contra acordo antidesmatamento no Congresso, assembleias legislativas e Judiciário

Plano para acabar com desmatamento associado à produção de commodities agrícolas recebe críticas

Um acordo que veda a compra de soja proveniente de áreas desmatadas da Amazônia se tornou alvo de disputa legislativa, judiciária e administrativa no Brasil.

Chamado de moratória da soja, o acordo está em vigor há quase 20 anos e sofreu o seu maior revés esta semana, ao ser suspenso por uma decisão proferida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). 

Por meio de uma medida preventiva, o órgão determinou que as empresas que comercializam o grão (as tradings) suspendam o acordo dentro de 10 dias, sob pena de multas diárias de R$ 250 mil.

A alegação é a suposta formação de um cartel. Também foi instaurado um processo administrativo contra as associações e empresas signatárias do acordo, entre elas Abiove, Anec, ADM, Bunge e Cargill. 

Em vigor desde 2006, a moratória é um acordo voluntário firmado primeiro entre as compradoras de soja e organizações da sociedade civil. Posteriormente, o governo brasileiro também se juntou à iniciativa.

As empresas signatárias se comprometem a não comprar soja cultivada em áreas da Amazônia desmatadas após julho de 2008, respondendo a uma demanda de compradores estrangeiros.

Foi o primeiro grande acordo setorial voluntário no país a vincular mercados globais à conservação ambiental.

“A imagem que fica do Brasil é ruim, de que o país estaria acabando com uma proteção à Amazônia”, diz Bruno Galvão, advogado no escritório europeu Blomsteim e colunista do Reset.

“Preocupações concorrenciais sempre devem existir. Mas a dinâmica de uma cadeia produtiva se estruturar para agir diante de um objetivo em comum não só é comum como muitas vezes incentivada por estruturas regulatórias”, diz o advogado, que fica baseado na Alemanha. 

A União Europeia vai proibir, a partir de 2026, a compra de produtos agrícolas provenientes de áreas desmatadas.

Na prática, hoje a moratória funciona como um “selo verde” que atesta uma soja livre de desmatamento. Ela é vista como um possível instrumento de comprovação para as exigências da lei europeia. 

O desmatamento é também um dos argumentos usados pelos Estados Unidos na imposição da tarifa de 50% sobre as exportações brasileiras.

O governo mencionou a moratória da soja como exemplo de iniciativa no combate ao desmatamento amazônico, em resposta de 91 páginas enviada aos EUA sobre a investigação comercial aberta pelo governo de Donald Trump, segundo reportagem da Agência Estado.  

Escalada

A queda de braço entre produtores e a indústria em torno da moratória vem desde o ano passado. Começou com a proliferação de projetos de lei em assembleias estaduais retirando incentivos fiscais concedidos às empresas que participam de acordos do tipo. 

O Mato Grosso, maior Estado produtor, sancionou sua lei em outubro. Rondônia e Maranhão aprovaram leis similares, enquanto Pará e Goiás têm projetos de lei no mesmo caminho em discussão. 

O tema chegou ao Judiciário. No Supremo Tribunal Federal (STF), duas ações propostas por quatro partidos (PCdoB, PSOL, PV e Rede Sustentabilidade) questionam a constitucionalidade das legislações estaduais. 

Os autores argumentam que elas violam princípios constitucionais, entre eles a livre iniciativa, o meio ambiente ecologicamente equilibrado e o combate às mudanças climáticas, ao punir práticas de mercado voluntárias que visam à sustentabilidade e à redução do desmatamento na Amazônia. 

A expectativa é que o julgamento seja retomado em breve pelo Supremo – a análise em plenário virtual começou em maio, mas foi suspensa em junho após um pedido de vistas de um ministro.

Os signatários da moratória apontam os resultados concretos da iniciativa. Desde a safra 2007/08, quando a área cultivada de soja na Amazônia foi de 1,6 milhão de hectares, a produção no bioma se expandiu a uma taxa média de 403 mil hectares ao ano, chegando a 7,3 milhões de hectares na safra 2022/23. Nesta última safra, apenas 5% da produção apresentou desmatamento, de acordo com a auditoria da moratória.

“É um compromisso que funcionou na Amazônia e não coibiu a expansão da produção”, diz Lisandro Inakake de Souza, gerente de projetos em cadeias agropecuárias do Imaflora, organização da sociedade civil que faz parte do acordo.

Ofensiva

À frente da ofensiva contra a moratória está a Associação dos Produtores de Soja e Milho do Mato Grosso (Aprosoja-MT). Foi ela que apresentou, em dezembro do ano passado, denúncia formal ao Cade, alegando que as tradings formam um “cartel de compra” com práticas coordenadas para limitar o mercado. 

Em outra frente, Aprosoja-MT ingressou com uma ação civil pública na Justiça do Mato Grosso, em abril, contra as empresas e associações signatárias. Na ação, pede o fim da moratória e indenizações de R$ 1 bilhão por danos financeiros e morais que os produtores teriam sofrido.

Em nota, a associação classificou a decisão como “um marco histórico” e avalia que a medida do Cade preserva a livre concorrência e devolve a segurança jurídica para produtores que seguem a legislação ambiental do Brasil. 

O principal argumento é de que o acordo é mais rígido que a legislação em vigor, uma vez que o Código Florestal permite a supressão vegetal de até 20% das propriedades rurais na Amazônia, mas as signatárias da moratória não compram soja de áreas desmatadas legalmente.  

“A gente não entende a moratória como um selo de sustentabilidade e sim a instalação de um cartel de compras dentro do Brasil. O que a gente pretende comprovar para a União Europeia é que não é essa exigência que garante a sustentabilidade no Brasil”, diz André Dobashi, presidente da Comissão Nacional de Grãos da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).  

O processo no Cade foi iniciado a partir de representações feitas por quatro entidades: Aprosoja-MT; CNA; Câmara dos Deputados, feita pela deputada federal Coronel Fernanda; (PL-MT); Senado, proposto pelo senador Marcos Rogério (PL-RO).

Tanto a deputada quanto o senador são representantes dos dois Estados que aprovaram leis contra a moratória e já tinham realizado audiências públicas no Congresso sobre o tema. 

“Com essas quatro representações juntadas ao processo administrativo, entendemos que era hora de apresentar uma medida cautelar e tentar cessar os efeitos dessa moratória, cada vez mais agravada”, diz Dobashi.  

O pedido de adoção de providências imediatas da CNA alegou “danos concretos aos produtores que não podem aguardar a tramitação do processo”. Para isso, a entidade apresentou um parecer econômico apontando prejuízos para o setor e para o país.

O documento estima que nos quatro primeiros anos a moratória teria causado prejuízos de R$ 4 bilhões aos produtores do bioma e um impacto negativo no PIB regional.  

Barreira comercial

A medida preventiva imposta pela Superintendência Geral do Cade será analisada pelo Tribunal do Cade, após o sorteio de um relator. Não há prazo para que isso ocorra, mas as associações e empresas signatárias devem recorrer da medida. 

Para a superintendência do Cade, a moratória “constitui um acordo anticompetitivo entre concorrentes que prejudicam a exportação de soja”. Em nota, disse que existe a possibilidade de ser fixado um Termo de Cessação de Conduta (TCC) entre o Cade e as representadas.

Caso sejam condenadas, as associações poderão ter de pagar multas entre R$ 50 mil e R$ 2 bilhões e as empresas, entre 0,1% e 20% de seu faturamento bruto. 

As companhias não falam pública nem individualmente sobre a moratória, direcionando os pedidos de comentários para a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), que junto com a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec) representa a maioria das empresas signatárias.  

Em nota, a Abiove disse que recebeu “com surpresa” a decisão do Cade. 

Entre as entidades do governo signatárias estão o Ibama, Inpe, Ministério do Meio Ambiente (MMA) e Banco do Brasil, segundo o último relatório de auditoria da moratória disponível, da safra de 22/23.  

Em nota, o MMA destacou que a moratória da soja é um instrumento “pioneiro e reconhecido internacionalmente”, que estabeleceu critérios claros para a produção sustentável de soja na Amazônia.

“É uma questão que coloca na balança escolhas políticas do próprio governo”, diz uma pessoa próxima das signatárias da moratória, que pediu para não ser identificada. 

“Restringir essa discussão a um processo de conduta de cartel, que é o que tá acontecendo no Cade, não é adequado. Porque ela suplanta qualquer potencialidade de conduta anticompetitiva, ela envolve acessos a mercados externos e políticas públicas de sustentabilidade.”