
As páginas e mais páginas de relatórios de sustentabilidade prometem uma coisa que hoje, na maior parte dos casos, não conseguem entregar: mensurar o quanto uma empresa pode perder e ganhar com o clima. Ou seja, expressar em cifrões os riscos que as mudanças climáticas podem trazer para os negócios, mas também as oportunidades.
As primeiras divulgações sob um novo padrão de reporte prometem mudar isso. A mineradora Vale publica nesta segunda-feira (2) seu primeiro relatório de informações financeiras relacionadas à sustentabilidade conforme as normas do International Sustainability Standards Board (ISSB), conhecidas como IFRS S1 e S2.
“A gente vai trazer uma profundidade maior de informações, com uma transparência maior. Com essa metodologia, a gente mostra o que pode ser positivo para nós e, nos riscos, o que pode não dar certo”, diz Marcelo Bacci, vice-presidente executivo de finanças da Vale.
No Brasil, o novo padrão será obrigatório para empresas de capital aberto a partir de 2027 (para o reporte do exercício de 2026), mas elas podem se adiantar de forma voluntária. Por ora, Vale e Renner aderiram à antecipação – a varejista de moda ainda não tem data definida para divulgação, que pode ocorrer até setembro.
No mundo, 56 jurisdições decidiram adotar o novo padrão, no que promete ser uma mudança de paradigma para o valuation das empresas. O Brasil foi o primeiro a aderir às novas regras – e a Vale, a primeira empresa a divulgar seus números.
“Isso não é um exercício só de ‘check the box’ para divulgar informações obrigatórias, porque a empresa tem que explicar do ponto de vista financeiro o risco e a oportunidade material para clima e natureza”, diz Ana Luci Grizzi, conselheira independente, senior advisor em clima e natureza e colunista do Reset.
As companhias também precisam mostrar como integram esses diagnósticos ao seu gerenciamento de riscos e estratégias de negócios. “É aí que o investidor vai entender qual é o tamanho do buraco e decidir se vai investir em você ou não”, diz Grizzi.
Riscos em $
Quais informações novas o relatório da Vale vai trazer?
Um exemplo é a precificação do carbono. O assunto já era tratado nos relatórios integrados da mineradora, mas agora isso será expresso em dinheiros.
“Um range [faixa] de valores que a companhia pode vir a enfrentar dado esse processo de formalização [de mercados de carbono] nas diversas geografias”, explica Rodrigo Lauria, diretor de mudanças climáticas e carbono da Vale. “Esse é um exemplo mais objetivo, que passa a estar nas demonstrações e a ser monitorado.”
A companhia estima que poderá ter custos, a valor presente, entre R$ 7 bilhões e R$ 19 bilhões decorrentes de mecanismos de precificação de carbono. “Esses custos podem impactar a demonstração do resultado e os fluxos de caixa da companhia substancialmente a partir de 2030, portanto, no horizonte de longo prazo”, diz o relatório.
Existem 75 jurisdições, como União Europeia (UE) e Califórnia, que colocam um preço no carbono, segundo o Banco Mundial. Elas adotam dois tipos de esquema: de comércio de emissões (conhecido como cap and trade, que será implementado no Brasil) ou de imposto sobre o carbono emitido. Cerca de 24% das emissões globais estão sujeitas a esses mecanismos de precificação.
Há também taxações de fronteiras. A partir de 2026, a UE vai aplicar uma sobretaxa a certos produtos importados que embutem muito CO2, como aço, cimento e fertilizantes, em uma diretiva chamada de CBAM. O Reino Unido deve fazer o mesmo no ano seguinte.
“Dependendo de como o carbono for taxado, da velocidade de adoção e da nossa capacidade de reduzir as emissões, podemos ter um risco financeiro de fazer pagamentos no futuro”, afirma Bacci.
Oportunidades
Entre as oportunidades, a Vale identifica um possível aumento na procura por produtos que possam reduzir as emissões do setor siderúrgico – uma das atividades industriais mais poluentes do mundo – e também por metais críticos para a transição energética, como níquel e cobre.
Na rota da descarbonização, a mineradora desenvolveu o briquete de minério de ferro, que promete reduzir em até 10% as emissões no alto-forno das siderúrgicas.
A solução, porém, ainda precisa ganhar escala. “O briquete, que é essa nova forma de aglomerado [de minério de ferro], está sendo desenvolvido há 20 anos, mas ainda não é totalmente comercial. Nós fizemos os primeiros embarques de clientes agora, está em teste”, diz Bacci.
Esse novo produto da Vale faz parte de uma estratégia, os chamados ‘mega hubs’: complexos industriais voltados para siderurgia de baixo carbono. A empresa anunciou tratativas para construir esses complexos com parceiros no Oriente Médio, Estados Unidos e no Brasil.
Essas iniciativas devem ajudar a mineradora a atingir suas metas de redução de emissões de CO2. Nos escopos 1 e 2, respectivamente o impacto climático das atividades diretas da empresa e da energia que ela utiliza, o objetivo é corte de 33% das emissões até 2030 – com relação ao ano-base de 2017 – e zerar as emissões líquidas até 2050.
Para o escopo 3, relativo às emissões indiretas da cadeia de valor, a meta de redução é de 15% até 2035. Segundo o relatório, a Vale investiu R$ 7,4 bilhões em iniciativas de descarbonização desde 2020.
Contabilidade ESG
O novo padrão do ISSB é composto por dois conjuntos de normas. A primeira delas, chamada de S1, diz respeito a informações mais gerais de sustentabilidade. A segunda, chamada de S2, trata das informações diretamente relacionadas ao clima.
As normas permitem que as empresas adotem uma divulgação mais simplificada do S1 em seu primeiro reporte. A Vale se valeu dessa simplificação, o que já era esperado pelo mercado por conta da complexidade de adoção das novas regras.
A virada de chave que as novas regras do ISSB trazem é o que os contadores chamam de materialidade financeira. Grosso modo, materialidade é uma informação que, se omitida ou errada, pode influenciar a decisão de usuários: investidores, funcionários, comunidades, clientes, fornecedores.
A materialidade financeira traz o que é material para a empresa expresso em cifras financeiras.
“Tudo que se construía de sustentabilidade era olhando do negócio para fora, tudo que eu construía de financeiro era olhando de fora para dentro. Os impactos como resíduos e contaminações, por exemplo, só vão constar no relatório se forem classificados como materiais. Os efeitos da mudança do clima, como inundação de uma fábrica, idem. A chave aqui é: afeta fluxos financeiros?”, explica Grizzi.
Isso vai obrigar o time financeiro a trabalhar junto com o de sustentabilidade para que o novo reporte seja possível, segundo ela.
“Os times de risco habituados às metodologias tradicionais não costumam ter clima e natureza no radar. Eles olham risco estratégico, operacional, financeiro, de reputação, mas a conexão dessas classificações com riscos físicos e de transição de clima e natureza não é feita, porque esses temas ficavam restritos à área de sustentabilidade. Agora isso vai acabar”, diz.
Ao que parece, finalmente as duas áreas vão se conversar.
*Reportagem atualizada às 9h02 para incluir projeção sobre custos com precificação de carbono. E às 14h55 para corrigir informação sobre materialidade.