Da materialidade à mateREalidade no reporte ESG

Cinco conselhos para navegar os diferentes padrões de relato e fugir do banal na comunicação da sustentabilidade das empresas

Cinco conselhos para fugir do banal no reporte e na comunicação ESG das empresas
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Materialidade é um conceito com origem na contabilidade. Significa, grosso modo, a característica de uma informação que, se omitida ou errada, pode influenciar a decisão de usuários.

O conceito foi importado e adaptado para os reportes de sustentabilidade nos anos 1990 pela Global Reporting Initiative (GRI). 

Com diretrizes bastante amplas e um menu não exaustivo de temas e indicadores que poderiam se aplicar a todos os setores da atividade econômica, o então “princípio da materialidade” foi útil para atrair empresas a relatarem o que entendiam ser mais relevante para todas as suas partes relacionadas – como funcionários, comunidades, clientes, fornecedores, investidores, os chamados stakeholders. 

No GRI, a materialidade diz respeito aos impactos econômicos, ambientais e sociais da empresa, na ótica do que seus stakeholders, não apenas os acionistas, gostariam de saber.

Surge, então, a matriz de materialidade, uma ferramenta de priorização de temas. Num eixo, os temas que os stakeholders consideram mais relevantes, no outro eixo os temas considerados relevantes pela administração. E, voilá, temos os temas materiais para relato na interseção ou nos quadrantes superiores à direita do gráfico.

O desafio do processo era definir os tais stakeholders. Quem são? Quantos são? Chama o sindicato para falar pelos trabalhadores? Comunidades do entorno são tantas, em várias localidades. Como fazer? E o meio ambiente? As árvores, os animais, o ar, o solo não falam. Chamamos as ONGs para “falar” por eles? Uma de cada tema? Melhor falar com especialistas que podem representar um grupo de stakeholders? E se mandássemos uma pesquisa estruturada, com respostas online ou por telefone?

Após muito tempo investido pela própria equipe, administração, stakeholders e consultores, eram publicados relatórios com centenas de páginas nove a doze meses depois do fim do período de reporte. Os poucos que liam não gostavam, alegando que faltavam informações, não havia comparabilidade, entre outros problemas. Mas até que o processo do relato servia para dar um empurrão na agenda de sustentabilidade da companhia. Ufa!

Na década de 2010, as críticas ficaram mais fortes. Os investidores começam a pedir informações materiais para suas decisões de investimento. Não queremos saber como a empresa impacta o mundo, e sim como o mundo impacta a empresa. Precisamos integrar o ESG em nossas decisões. 

É a nova realidade: a materialidade agora é financeira.

Brotam iniciativas e frameworks para padronizar os temas, indicadores e relatos: Project Delphi, EFFAS KPIs for ESG, SD KPIs, IIRC, TCFD, SASB, etc. E assim passamos a ter materialidades conflitantes: uma para a estratégia, uma para o relato aos stakeholders, outra para o relato aos investidores. 

Com a disseminação dos ratings e índices ESG trazendo ainda mais complexidade ao campo.

O processo de materialidade muda: em vez de selecionar stakeholders, selecionam-se os frameworks. Minha materialidade terá os temas e indicadores que mais ‘ticam’ as caixinhas dos frameworks.

E, no final do processo, ainda se faz o ‘de-para’ com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, os ODS da ONU. Precisamos contemplar pelo menos 10 ODS. O primeiro que chegar aos 17 grita ‘bingo’!

Os ODS foram criados em 2015 com foco na atuação de governos. As empresas foram chamadas a dar sua contribuição na agenda, mas a ginástica metodológica para se “enquadrar” nos ODS é significativa.

A maior contribuição dos ODS para o setor privado foi trazer o pêndulo da materialidade mais próximo ao impacto que a empresa causa no mundo. O crescimento do movimento de investimento de impacto e de frameworks alternativos como Sistema B também contribuíram com o processo.

Em 2023, observamos marcos importantes de convergência e divergência de frameworks de reporte.

Enquanto o ISSB – International Sustainability Standards Board lança seu standard voluntário que absorve os frameworks da Integrated Reporting, SASB e TCFD, com foco na materialidade financeira, o ESRS – European Sustainability Reporting Standard é o primeiro framework mandatório de uma geografia relevante, e traz o conceito de dupla materialidade: impacto do mundo na empresa + impacto da empresa no mundo.

Ou seja, as empresas continuarão enfrentando múltiplas ‘mateRealidades’ nos próximos anos.

Para navegar neste cenário, alguns aprendizados podem ser úteis:

  • 1. Materialidade é assunto de estratégia, antes de ser princípio de reporte. Faça a sua como parte do planejamento estratégico, envolvendo a governança apropriada.
  • 2. A dupla materialidade veio para ficar. Quem tem dupla materialidade pronta consegue fazer o recorte de materialidade financeira para frameworks específicos ou reporte a investidores. Quem só tem a materialidade financeira não vai conseguir inventar a dupla materialidade de uma hora para outra.
  • 3. Com a quantidade de frameworks, taxonomias, menus de temas, indicadores e aprendizado histórico, o valor agregado de se fazer consulta a stakeholders diminuiu. Se for fazer, faça de maneira robusta: o questionário online semi-estruturado enviado para uma amostra de stakeholders sem representatividade estatística pode te colocar na rota errada. O ChatGPT provavelmente errará menos.
  • 4. ODS não é cartela de bingo, mas pode ser um elemento para inspirar o impacto que sua empresa pode ter no mundo. Taxonomias de negócios sustentáveis, cenários científicos setoriais e ferramentas de avaliação de impacto (negativo e positivo) devem ser utilizadas.
  • 5. Se o seu negócio continua idêntico (modelo, segmentos, geografias), a materialidade do seu impacto no mundo dificilmente muda de um ano para o outro. Mas a materialidade financeira pode ser bem mais dinâmica, respondendo a mudanças regulatórias, demandas de clientes, investidores etc. É prudente revisitar a materialidade financeira todo ano.