
Fazer com que pessoas do outro lado do planeta consumam hortaliças típicas da Amazônia como a chicória, o cariru e a vinagreira. Este é um dos propósitos do empreendedor paraense Bruno Kato, fundador e CEO da Horta da Terra.
A startup sediada em Belém cultiva plantas alimentícias não convencionais (as chamadas Pancs) 100% orgânicas e as transforma em pó por meio de um processo de desidratação por congelamento conhecido como liofilização.
Pode soar como um sonho distante, mas contratos recém assinados pela empresa preveem o envio, nos próximos dois anos, de cerca de 200 toneladas de açaí liofilizado em pó para a China, um mercado onde o consumo da fruta vem crescendo, mas ainda não é tão popular.
O modelo de negócio da Horta da Terra foi traçado com um forte olhar para a exportação. Para que seus produtos pudessem viajar o mundo, Kato percebeu, desde o início, que precisava vencer alguns dos principais desafios do ecossistema amazônico, especialmente para quem trabalha com produtos frescos como hortaliças.
“Além da logística complicada, havia a questão do armazenamento, a necessidade de refrigeração e um prazo de validade muito curto”, ele diz.
Uma das principais vantagens da liofilização é a longa vida útil dos produtos. Enquanto os frescos têm um tempo limitado de prateleira, os liofilizados podem durar mais de duas décadas – os produtos da Horta da Terra têm validade de 24 meses estampada no rótulo, apenas por conta da legislação brasileira e da regulamentação da Anvisa, segundo o CEO.
“E não há necessidade do uso de conservantes”, diz Kato. “Dentro dos nossos sachês há apenas um ingrediente, a planta.”
O portfólio da startup conta com sete opções de hortaliças: chicória, cariru, taioba, açaí, jambu, vinagreira e ora-pro-nóbis, todas com benefícios medicinais, funcionais e nutricionais comprovados por pesquisas científicas. Em breve outros dois ingredientes devem ser incluídos na lista: a marapuama, um potente neurotônico, e a folha de graviola, que tem potencial ação anticancerígena.
O processo de desidratação por congelamento contribui para conservar e aumentar a concentração de diversos ativos presentes nas hortaliças, o que potencializa alguns desses benefícios. Isso acontece porque a sublimação extrai a água dos ingredientes direto do estado sólido para o gasoso, sem ela entrar no estado líquido. A técnica preserva o sabor do alimento e protege vitaminas e minerais que poderiam ser perdidos em métodos tradicionais de conservação.
Outro ganho é a facilidade no manuseio e transporte, eliminando a necessidade de cadeia refrigerada até o consumidor final. “Além disso, a versão em pó acaba com a complexidade de ter de garantir alta qualidade de apresentação visual dessas hortaliças, que são muito diferentes umas das outras e exigem cuidados distintos, quando frescas”, diz Kato.
Agricultura sintrópica regenerativa
Parte das plantas é cultivada pela própria Horta da Terra em uma propriedade de 37 hectares em Santo Antônio do Tauá, cerca de 60 quilômetros ao sul de Belém. A área de agricultura ocupa apenas 20% do terreno – os outros 80% são de reserva, como exige o Código Florestal Brasileiro.
Kato comprou as terras em 2009 e durante os dois primeiros anos deixou o local em pousio, técnica agrícola na qual o solo descansa por um período, sem cultivos, a fim de recuperar sua fertilidade. O plano inicial era plantar hortaliças orgânicas e abrir uma boutique do nicho, mas por falta de investidores ele foi adiado até o fim de 2015.
Na fase de planejamento, o primeiro obstáculo foi encontrar estudos técnicos sobre sistemas orgânicos que levassem em conta a realidade amazônica. “Tive de vestir, além do chapéu de empreendedor, o de cientista”, diz Kato.
Na prática, entre erros e acertos, ele comparou a resposta das hortaliças amazônicas às das convencionais. “As PANCs lidavam com as oscilações climáticas da região de uma maneira muito mais eficiente. Um toró na Amazônia, com seus pingos grossos, destruía toda a rúcula, o agrião e o alface. Já as folhas amazônicas seguiam fortes e exuberantes.”
A empresa, então, bateu o martelo: não lutaria mais contra a natureza. “Não fazia sentido insistir em espécies que não são adaptadas à nossa realidade”, diz o empreendedor.
A escolha das que seriam comercializadas pela empresa foi estratégica. “O giro dessas hortaliças é mais rápido [são culturas que permitem a produção de mais de uma safra por ano] e equilibra o fluxo de caixa do negócio. E selecionamos ingredientes que são considerados únicos e exclusivos da biodiversidade amazônica.”
Quando a startup começou a fechar uma quantidade maior de contratos B2B (venda para empresas), foi preciso encontrar soluções para escalar a produção sem abrir mão da sustentabilidade.
André Barros, hoje diretor de operações da empresa (COO), apresentou a Kato as técnicas desenvolvidas no Brasil pelo suíço Ernst Götsch, que vive há quatro décadas no sul da Bahia. Götsch é criador e referência mundial em agricultura sintrópica, que se inspira em processos naturais e ecossistemas virgens para um manejo regenerativo.
A transição do sistema orgânico para o sintrópico e regenerativo foi gradual. Ao longo do processo, a empresa focou cada vez mais o plantio em espécies menos conhecidas e passou a comprar açaí, jambu e chicória, culturas mais tradicionais na agricultura familiar, de comunidades e associações.
“Sempre pagando um valor mais alto do que o praticado no mercado e exigindo todas as certificações”, diz Kato. Em feiras orgânicas, o preço do quilo do jambu, por exemplo, varia de R$ 8 a R$ 10; a Horta da Terra paga aos produtores entre R$ 15 e R$ 18.
O novo modelo corria bem até que a pandemia de covid-19 fechou restaurantes e lanchonetes, à época maiores fontes da receita da Horta da Terra. Para o negócio sobreviver, em 2020 houve a virada de chave para os liofilizados, que têm se mostrado uma escolha acertada. No primeiro ano dos produtos em pó, a startup faturou R$ 13 mil. No segundo, passou a R$ 30 mil e, no seguinte, a R$ 180 mil. Em 2024 o faturamento foi de R$ 500 mil.
“A projeção para 2025 é atingir R$ 6,5 milhões”, diz Kato. A empresa se baseia em contratos de exportação fechados com a China e em negociação com os Emirados Árabes para justificar esse aumento no faturamento, e no lançamento de um novo produto nos próximos meses.
Para dar conta da demanda maior, a Horta da Terra vai inaugurar, no fim de abril, uma nova fábrica de 837 m2. Até aqui, o processo de liofilização é realizado em um contêiner de 65 m2 batizado de Lab Fábrica, em Belém, criado também para pilotar, testar e protocolar protocolos industriais. O atual liofilizador de bancada será trocado por um semi-industrial, o que aumentará a capacidade produtiva da startup.
Também na capital paraense, o novo espaço tem design modular, para crescer junto com a empresa. “Assim gerenciamos melhor o risco financeiro relacionado com o investimento”, diz Kato.
Aberta com cerca de R$ 1,2 milhão de capital próprio, a Horta da Terra é hoje um dos negócios da carteira do Fundo de Biodiversidade da Amazônia (ABF, na sigla em inglês), veículo de blended finance sob gestão da consultoria britânica Impact Earth. Numa primeira fase, a startup havia recebido quase R$ 4 milhões do fundo. No ano passado, outros R$ 7 milhões foram investidos, o que possibilitou a abertura do novo espaço e a compra de equipamentos maiores.
Shots de blends amazônicos
Além dos produtos em pó, a Horta da Terra deve lançar em breve quatro shots com misturas de ingredientes amazônicos. Eles foram desenvolvidos nos últimos 18 meses, durante um desafio global promovido pela Fundação Ellen MacArthur em parceria com o Sustainable Food Trust, o Big Food Redesign Challenge.
Os participantes foram provocados a criar novos produtos alimentares – ou redesenhar já existentes – usando princípios da economia circular. O evento recebeu mais de 400 inscrições, mas apenas 57 empresas de 12 países foram selecionadas e desenvolveram 141 produtos.
Além da troca de conhecimento, cerca de £ 570 mil (R$ 4,1 milhões) de subsídio foram disponibilizados para 19 startups e pequenas empresas. No Brasil, quatro receberam capital para o desenvolvimento das soluções, entre elas a Horta da Terra, contemplada com R$ 190 mil.
“Além dos benefícios para a saúde, os shots serão vendidos em embalagens com biojóias amazônicas, feitas com sementes locais”, diz Kato. “É uma maneira de difundir o trabalho das comunidades e promover a biodiversidade e a circularidade dessas sementes.”
A previsão de lançamento é em junho deste ano e, por enquanto, eles devem ser vendidos nos Estados Unidos e no Brasil, com pontos de venda no site da empresa, e-commerces e em lojas especializadas. A Horta da Terra já exporta seus produtos liofilizados para Estados Unidos e China, e acaba de fechar contrato com empresas dos Emirados Árabes.
Nestes países, o principal modelo de negócio é o B2B, mas alguns mercados ainda mostram mais interesse pelo B2C (venda direto ao consumidor final). “Vamos começar a comercializar em breve os nossos sachês de açaí e de jambu na Alemanha e na Suíça”, diz Kato.
No B2B, o preço do quilo de produtos em pó liofilizados varia de US$ 44 a US$ 69, dependendo da quantidade negociada. No varejo, cada sachê de açaí sai por R$ 50 e os dos demais ingredientes, por R$ 94,53 (25g). O markup médio (diferença entre o custo do bem e seu preço de venda) da empresa é de 100%.