O rombo de R$ 20 bi da Americanas, explicado

Entenda as inconsistências contábeis que inflaram o lucro da varejista nos anos anteriores e que vão demandar uma capitalização bilionária

Fachada de unidade das Lojas Americanas em shopping center
A A
A A

Passados o choque e a desorientação iniciais diante da notícia de que foram encontradas inconsistências contábeis no valor de R$ 20 bi nas demonstrações financeiras da Americanas, a natureza dos problemas começou a ficar clara.

Numa tumultuada conferência com investidores e analistas – parte presencial e parte por Zoom – organizada pelo BTG Pactual na manhã de ontem, o executivo Sergio Rial, que no prazo recorde de nove dias tomou posse como CEO, descobriu os problemas e renunciou ao cargo, tentou explicar o que já sabe.

O ‘rombo’

O que passou o dia de ontem sendo chamado de ‘rombo’ não é propriamente um rombo, no sentido de refletir o tamanho do buraco que terá que ser coberto.

A conta de R$ 20 bilhões inicialmente apresentada – e que ainda terá que ser conferida e auditada – representa uma somatória de lançamentos contábeis feitos de forma errada nas demonstrações financeiras da varejista.

Erro 1

O primeiro equívoco encontrado foi que a Americanas tinha um volume da ordem de R$ 15 bilhões a R$ 17 bilhões de financiamentos a fornecedores feitos por via bancária e que, portanto, deveriam constar como dívida financeira no balanço.

Em vez disso, a companhia os lançava como dívidas com fornecedores – um passivo operacional e não financeiro. 

Em abril de 2016 a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) divulgou um ofício circular orientando as varejistas a abandonar essa prática contábil e a fazer os lançamentos da forma correta – ou seja, reconhecendo dívida bancária como dívida financeira – justamente para evitar distorções.

Erro 2

Mas, no caso da Americanas, esse volume de dívida bancária tampouco estava totalmente refletido na chamada conta fornecedores, que contempla os valores devidos aos fornecedores. No balanço do terceiro trimestre, essa conta era da ordem de R$ 5 bilhões.

E aí ficou evidente o segundo, e talvez mais grave, problema: a conta fornecedores da empresa foi indevidamente reduzida na ordem de bilhões de reais.

O grosso da redução, explicou Rial, veio da dedução de juros pagos. Cada vez que a Americanas pagava juros aos bancos por conta dos financiamentos a fornecedores, a contabilidade da empresa subtraía esses juros do total da conta de fornecedores.  

“A companhia lançou no seu ativo uma porção de entradas contábeis que deveriam ter ido para a demonstração de resultados e outras que deveriam ter sido lançadas contra o patrimônio líquido, e que eles lançaram como itens redutores da conta fornecedores”, tentou resumir Rial.

Sem especificar quais, ele disse que houve lançamentos indevidos de outras naturezas que reduziram ainda mais a conta fornecedores.

Erro 3

Do segundo erro decorre o terceiro. 

Quando uma empresa paga juros de dívidas bancárias, essa saída é lançada na demonstração de resultados como despesa financeira. No caso da Americanas, com os juros pagos aos bancos sendo usados para reduzir a conta de fornecedores, eles não foram lançados da forma correta.

Com uma despesa financeira artificialmente menor, o lucro da Americanas ao longo dos anos foi inflado. A revisão das demonstrações financeiras de anos pregressos fatalmente demonstrará que os lucros reportados, que balizaram a distribuição de dividendos aos acionistas e também orientaram a remuneração variável de executivos, estavam superavaliados.

“Vai ter uma variedade de ajustes que, combinados, resultam em R$ 20 bilhões”, resumiu Rial.

Segundo ele, no entanto, ainda não é possível afirmar quantos bilhões terão que ser subtraídos de resultados de exercícios passados e qual será o impacto negativo no patrimônio líquido da empresa.

Dívida e capitalização

Garantido, disse o executivo, é que praticamente não haverá efeito no caixa da empresa, porque durante os anos em que a contabilidade foi errada “todos foram pagos, fornecedores e bancos”.

Mas ele ressaltou que a integridade do caixa e a existência de fôlego financeiro para a rede seguir operando vai depender, essencialmente, da postura dos bancos. “A resposta dos bancos será incrivelmente importante. Se desplugar [as linhas de financiamento], a empresa não vai ser capaz de financiar os mesmos volumes de venda.”

Também líquido e certo é que a dívida bancária da Americanas vai crescer em torno de R$ 16 a R$ 17 bi no balanço e, com isso, a dívida bruta total da companhia vai ultrapassar os R$ 30 bi, a maior parte dela, de longo prazo.

Com o patrimônio líquido ajustado para baixo e a dívida, para cima, a alavancagem da Americanas deve explodir, o que vai trazer a necessidade de uma capitalização da empresa, da ordem de ‘bilhões e não milhões’, segundo Rial.

De acordo com informação trazida no fato relevante divulgado na noite de quarta pela companhia e reiterada pelo executivo na conferência com o mercado, o trio de acionistas de referência da Americanas – Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles – sinalizou disposição de capitalizar a empresa. 

Vale notar que a capitalização será feita com o preço das ações na bacia das almas depois do tombo de quase 80% no pregão de ontem, o que deve ampliar enormemente a posição acionária do trio na companhia. Os três abriram mão do controle da empresa pouco mais de um ano atrás e agora podem voltar a ter uma posição majoritária.

Foi fraude?

Esses lançamentos errados aconteceram por vários anos. Rial não soube precisar se seriam 6, 10 ou mais de 10 anos, mas que seguramente superam 3 a 4 anos.

Um dos analistas que participaram da conferência se referiu aos problemas como fraude. Rial o corrigiu, dizendo não estar em posição de afirmar que se tratou de fraude. Ele usou a expressão “lançamentos incorretos”. “A natureza do erro quem vai apurar é o comitê independente”, afirmou.

O comitê independente, formado por Otávio Yazbek, Vanessa Claro Lopes e Pedro Melo, foi indicado pelo conselho de administração para conduzir uma investigação interna.

Como o problema foi descoberto tão rápido?

O prazo tão curto entre a posse de Rial como CEO, em 2 de janeiro, e a eclosão do escândalo, em 11 de janeiro, deixou no ar a dúvida sobre quando de fato os problemas foram detectados. Há quem desconfie que a questão já estivesse mapeada e que, avisado do problema logo ao chegar, o executivo tenha decidido trazer a público e sair da empresa para não ser responsabilizado.

A versão apresentada por Rial é que ele e o ex-CFO André Covre começaram a ficar desconfiados porque, ao tomar conhecimento que a Americanas tinha uma conta de financiamento bancário a fornecedores da ordem de R$ 15 bi, foram checar o balanço e perceberam que isso não estava refletido.

A partir daí, disse, começaram a fazer perguntas internamente sobre como isso estava contabilizado e descobriram os lançamentos feitos de maneira ‘inadequada’. 

Comunicação heterodoxa

Se um rombo dessa magnitude é inédito, a forma como ele foi trazido a público e explicado a investidores foi algo também sem predecentes, gerando ruídos e descontentamento.

Primeiramente porque o porta-voz das notícias foi o CEO que acabara de renunciar ao cargo e que, portanto, não tinha mais um vínculo formal para falar em nome da empresa. Agora, Rial atua como consultor do trio de acionistas de referência na reestruturação da empresa.

Por outro lado, como o CEO anterior da empresa, Miguel Gutierrez, já havia saído – e agora encontra-se sob suspeita – e o novo CEO interino, João Guerra, ainda está tomando pé da situação, talvez não houvesse alternativa melhor.

Seja como for, caberia à companhia organizar teleconferências com analistas e investidores, mas esse ritual não foi cumprido pela área de relações com investidores da Americanas. Em vez disso, o anfitrião da conferência foi o BTG Pactual, um dos bancos credores da companhia, a pedido de Rial. 

A situação foi caótica porque o evento foi realizado no auditório da sede do BTG em São Paulo e transmitida por meio do Zoom, com limitação de 1000 participantes. A tele lotou antes mesmo de começar e deixou mais de 3 mil pessoas na fila de espera. A empresa tem mais de 140 mil acionistas em sua base. Só bem mais tarde no dia de ontem o link com a gravação apenas parcial da teleconferência foi colocado na página de RI da Americanas.

A Americanas segue informando que não tem previsão de realizar uma teleconferência com o mercado.

Muitos investidores avaliaram que Rial agiu para se blindar e evitar liabilities. Fato é que as ações de Rial foram alinhadas com Lemann, Sicupira e Telles, que concordaram que só o ex-CEO deveria falar sobre o episódio.

Ainda pairam mais dúvidas que certezas no ar e vai levar meses até que a extensão e natureza dos problemas seja esclarecida, se apurem as responsabilidades e que se desenhe uma solução. Rial deixou no ar que um movimento estratégico, como fusão ou venda, pode fazer parte do cardápio. Mas tudo é muito prematuro, dado o tamanho do escândalo.