Mudança climática: Na transição justa, ninguém pode ficar pra trás

As políticas corporativas de ESG também podem incorporar dimensões de justiça climática, escreve Caroline Dihl Prolo

Justiça climática: na transição justa, os grupos vulneráveis não podem ser deixados para trás
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A crise climática pode levar o planeta a esquentar em níveis perigosos e irreversíveis até o ano de 2040, se não forem tomadas ações concretas para reduzir e neutralizar as emissões globais de gases do efeito estufa e descarbonizar as economias.

Ainda assim, a mudança do clima que já vivemos hoje afeta e afetará ainda mais toda a sociedade global, causando enormes perdas econômicas, sociais, ambientais e humanas. Em meio a tantas dificuldades e incertezas sobre o enfrentamento desse problema, duas coisas são certas: 1) alguns são mais vulneráveis que outros aos efeitos da mudança do clima; e 2) alguns têm mais capacidade de agir que outros para evitar os piores efeitos dessa crise.

Surge um novo imperativo moral: a justiça climática.

Nunca vou me esquecer de que, ao final da COP21, em dezembro de 2015, depois de os países aclamarem a adoção do Acordo de Paris, Tony deBrum, representante das Ilhas Marshall, cedeu seus cinco minutos de discurso para que a jovem Selina Leem, de 18 anos, pudesse falar em nome do país.

As Ilhas Marshall, assim como outros muitos pequenos países insulares do Pacífico, estão sendo gradualmente submersas por causa do aumento do nível dos oceanos.

Selina representava não apenas a vulnerabilidade de um país que corre risco de extinção, mas também a frustração de uma geração que tem limitadas ferramentas para tomar as devidas ações – e que mais vai sofrer com os resultados dessa inação climática no futuro.

Selina também representava dois princípios fundamentais da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (da sigla em inglês UNFCCC): o princípio da equidade intrageracional e o princípio da equidade intergeracional.

Em outras palavras, o enfrentamento da crise climática precisa considerar os vulneráveis de hoje e também os de amanhã: ninguém pode ser deixado para trás.

E quem são essas populações? São grupos que agora têm sua condição agravada pelos efeitos da mudança do clima, mas que já estão expostos a algum tipo de vulnerabilidade social: pobreza, desigualdade social, desigualdade de gênero e raça.

Também são aqueles cujo sustento depende de setores de alta intensidade de carbono – indústrias que provavelmente desaparecerão com a descarbonização da economia. Trabalhadores de minas de carvão de cinturões carboníferos na Polônia, Alemanha e na região do Sul do Brasil são um exemplo.

Para enfrentar a crise climática sem deixar ninguém para trás é necessário criar condições para que trabalhadores e suas famílias, pequenos negócios, municípios e comunidades possam desenvolver novas habilidades técnicas, ofícios, conhecimentos e fontes de recursos para prosperar na nova economia de baixo carbono, de forma gradual e digna. 

É o que chamamos de transição justa.

A União Europeia adotou um conjunto de medidas para ajudar as regiões, indústrias e trabalhadores mais vulneráveis a lidar com os efeitos econômicos e sociais da descarbonização.

O Mecanismo de Transição Justa busca mobilizar pelo menos 150 bilhões de euros até 2027 e inclui investimentos, suporte técnico e aconselhamento para os trabalhadores e um mecanismo de crédito financiado pelo orçamento da UE.

E quando a economia de um país inteiro é altamente dependente do carvão? É o caso da África do Sul, que tem 80% da energia elétrica gerada a partir de fontes de carvão e emprega cerca de 120 mil trabalhadores em mineração ou indústrias relacionadas.

Durante a COP26, no ano passado, foi anunciada a criação de um fundo de US$ 8,5 bilhões, com recursos de Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha, França e União Europeia, para ajudar o país a eliminar sua dependência do carvão até o ano de 2050. 

Batizado de Just Energy Transition Partnership, o fundo vai promover doações e empréstimos subsidiados para o fechamento de plantas de carvão e para apoio financeiro aos trabalhadores e regiões, bem como para a construção de usinas de fontes renováveis. A iniciativa é vista como um piloto que, se bem sucedido, pode ser replicada em outros países.

O papel do setor privado

Embora sejam fundamentais, políticas e financiamentos públicos não são os únicos elementos de uma transição justa para a economia de baixo carbono.

O setor privado também tem um papel a desempenhar – e as políticas corporativas de ESG também podem incorporar dimensões de justiça climática.

Na execução de suas políticas de sustentabilidade, empresas podem apoiar as comunidades de seu entorno na diversificação econômica, no desenvolvimento de competências para inclusão no mercado de trabalho verde e para a geração de negócios compatíveis com a economia de baixo carbono.

Empresas engajadas em planos de descarbonização podem buscar capacitar sua cadeia de fornecimento de forma a integrá-la nas suas próprias soluções de redução de emissões de gases de efeito estufa.

E as organizações têm participação substancial na promoção de justiça climática ao criar efetivas políticas de inclusão de gênero e raça que possam integrar mais grupos vulnerabilizados.

Quanto às futuras gerações, cabe a empresas, governos e instituições escutar as vozes da juventude e se perguntar: em que medida isso vai agravar a crise climática que estou transferindo para a próxima geração? Posso evitar isso?

Essa deveria ser uma métrica de desempenho ESG das organizações: a quantidade de aquecimento global evitado para as gerações futuras. 

A justiça climática requer que os atores assumam a responsabilidade pelas medidas necessárias para enfrentar a crise climática.

Se as gerações futuras não têm capacidade de agir hoje, se não se sentam às mesas de negociação, cabe a nós tomar as decisões justas e corretas, que levem em conta seus interesses.

No seu discurso em Paris, a jovem Selina contou que, mesmo durante sua curta vida, já tinha observado mudanças dramáticas em suas Ilhas Marshall: coqueiros que ela escalava quando criança desapareceram, túmulos de pessoas amadas foram levados pelas águas, barreiras de contenção dos oceanos foram completamente destruídas.

Para ela, naquele momento, o Acordo de Paris significava a esperança de que talvez ela e sua família não precisassem abandonar sua casa e sua terra. Paris significava o “momento da virada” da humanidade na luta contra a crise climática.

Ela acreditou na justiça e na força da coletividade global em construir as soluções para um problema que, especialmente para ela e tantos outros vulneráveis, terá efeitos devastadores.

Se nós, nesta geração, podemos agir para garantir um clima equilibrado, em que países não precisem ser submersos, famílias não tenham que abandonar suas terras e as crianças de hoje possam crescer e prosperar com dignidade, por que não fazê-lo?

Pois se não fizermos, nesta geração, quem vai fazer? Já dizia Martin Luther King: “Não há nada mais trágico neste mundo do que saber o que é certo e não fazê-lo”. King estava certo: não agir para evitar a mudança do clima pode ser a coisa mais trágica da história da nossa humanidade.

*Caroline Dihl Prolo é advogada na área de direito ambiental e mudanças climáticas, sócia do Stocche Forbes Advogados e colunista do Reset. É consultora jurídica do International Institute for Environment and Development (IIED) para projeto que dá suporte ao grupo dos países menos desenvolvidos nas negociações da Convenção de Clima da ONU e fundadora da Laclima – Latin American Climate Lawyers Initiative for Mobilizing Action.

(Crédito da foto: Markus Spiske/Unsplash)