Manter determinados acontecimentos vivos na memória coletiva é uma responsabilidade ética, como tantas outras na estratégia de governança das empresas. Por causa dela, no dia 20 de novembro comemoramos o Dia da Consciência Negra.
A data serve para refletirmos sobre a inserção do negro na sociedade brasileira e reconhecer seu protagonismo na formação dela, em que constitui 56% da população, segundo dados do IBGE. Sabemos que nas universidades, em cargos de médio e alto escalão nas empresas, nos conselhos de administração e em tantos outros setores não há uma representatividade equivalente.
E como destacar esta ausência aos olhos das crianças?
A literatura negra infantil assume não apenas o papel de registro histórico, mas contribui para humanizar o corpo negro, buscando eliminar estereótipos e seu papel de coadjuvante na história do Brasil.
“Ela apresenta o Brasil, os corpos que estão no Brasil. Não dá para narrar um Brasil que não existe”, afirma a pesquisadora e professora Ananda da Luz Ferreira, com mestrado e doutorado em relações étnico-raciais e sociologia da infância.
A partir da leitura e das reflexões sobre essas obras, famílias brancas, negras e de todas as cores passam a entender, de forma mais concreta, bastante próxima do real e menos como apenas mais uma história dos livros de História, o papel que negros e brancos desempenharam na construção da nossa sociedade.
Elas têm potencial para despertar, em todos, a constatação e o orgulho de pertencer a uma sociedade com essa constituição.
A maioria dos livros traz valores civilizatórios afro-brasileiros, como afeto, territorialidade, religiosidade, cooperativismo, oralidade e ecologia, entre outros.
“O corpo negro saiu da África sem bagagem e precisou se reconstruir num novo território para manter sua história viva”, explica Ananda. Ela lembra que nos navios negreiros não havia nem mesmo um idioma comum. As pessoas, portanto, tiveram de se apoiar em seus valores, culturais e ancestrais, para criar uma nova identidade.
O livro Mãe Sereia (Pallas Mini, R$ 43,00), de Teresa Cárdenas e Vanina Starkoff, narra a travessia da África à América com delicadeza e respeito. O Dragão do Mar (Pallas Mini, R$ 56,00), de Sonia Rosa e Anabella López, reflete esses valores ao longo da narrativa que conta a batalha que marcou o fim da escravidão no Ceará, antes mesmo da abolição de 1888.
Encontraremos também nessas obras personagens que podem ser vilões ou mocinhos, mas não mais apenas pano de fundo das histórias. Como as protagonistas de Meia Curta, (Mazza Edições, R$ 35,00), de Andreza Felix e Santiago Regis, e de Sábado, (VR Editora, R$ 54,35), de Oge Mora.
‘E’ de especial e de educação…
As obras são escritas e ilustradas por autores negros ou são resultado de parcerias entre negros e brancos, cada qual com sua contribuição. Muitas vezes, homens e mulheres que sempre escreveram e desenharam, mas tinham pouquíssimas oportunidades de publicação.
Elas não romantizam a escravidão e não apresentam personagens negros subalternos, sem voz, ou que dependem do branco para resolver suas questões. Acima de tudo, não reproduzem estereótipos racistas, contribuindo fortemente para uma consciência e uma educação na contramão desse movimento, tanto do ponto de vista da linguagem quanto na perspectiva das relações de poder.
Nesse contexto, famílias e crianças negras conseguem se reconhecer nas histórias e nas narrativas. Sentem-se mais fortes e amparadas para ter orgulho de sua cultura e da trajetória de seus ancestrais.
Podem contar com a auto-estima revigorada e com seu poder de agir, não só por ter um espelho mais nítido de seu passado, mas porque passam a ter confiança para se projetar no presente e no futuro e se ver em muitos espaços que podem ocupar.
“Racismo é uma opressão histórica, resultado de relações de poder, que exclui o negro da sociedade, seja da escola, das oportunidades de trabalho, de um ônibus ou de qualquer outro lugar”, diz Ananda.
Com essa literatura, as crianças vão aprender e entender que o outro existe e que é igualmente capaz de ocupar espaços antes exclusivos dos brancos, como mostra Ada Batista, Cientista (Intrínseca, R$ 49,90), de Andrea Beaty e David Rogers.
… e de estilo
Um dos maiores estereótipos da cultura negra no Brasil é o cabelo, um símbolo racial e de discriminação fortíssimo e pelo qual as crianças recebem mais ataques.
São muitos os bons livros que abordam o tema. Deixo três recomendações: Com que penteado eu vou (Melhoramentos, R$ 49,00), de Kiusam de Oliveira e Rodrigo Andrade, O mundo no black power de Tayó (Peirópolis, R$ 23,00), também de Kiusam de Oliveira e Taisa Borges, e Meu crespo é de rainha, (Editora Boitatá, R$ 41,00), de Bell Hooks e Chris Rachka.
Ananda é categórica: “a literatura negra vai apresentar mundos à criança. Ela sai da leitura tomada por esses mundos e volta para o seu próprio ambiente com essa bagagem e com essa cultura. Amplia seu repertório de vida.”
Pouco a pouco, o corpo negro, tratado como objeto que foi se apagando ao longo da história, ganha cor, vida e voz em páginas ricamente ilustradas, com palavras gentis e respeitosas, que os abraçam e os acolhem, devolvendo seu lugar na terra de todos nós. A ausência vai sendo preenchida, porém não para se reincorporar à paisagem. Ao contrário, tenta arrancar dessa paisagem as novas gerações e mostrar a elas o valor da miscigenação, o impacto da soma – no lugar da segregação – e o resultado de um movimento sem volta.
De passinho em passinho, um livro para dançar e sonhar, de Otávio Jr. e Bruna Ubambo (Cia das Letrinhas, R$ 39,90), é o convite oficial para esse baile. Transforma sonho em movimento e são todos bem-vindos. Entra nessa roda!
* Em 20 anos de carreira, Paula de Santis escreveu sobre economia e finanças na Gazeta Mercantil, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e revista Época. Liderou a comunicação corporativa da Whirlpool na América Latina e assessorou a presidência do Instituto Akatu. É jornalista com MBA em Gestão de Negócios Socioambientais e pós-graduação em Economia Solidária pelo ICP em Paris. Escritora, hoje cursa a pós-graduação O Livro para a Infância, n’A Casa Tombada, é mãe do Rodrigo e da Alice e mora na França.
(Crédito da imagem: Ilustração de Taisa Borges para o livro O mundo no black power de Tayó)