Mais que uma greve

A paralisação das três grandes montadoras de Detroit traz para o primeiro plano o impacto social da transição para carros elétricos

Grevistas da United Auto Workers, central sindical da indústria automobilística americana
A A
A A

(Este texto foi publicado em primeira mão na newsletter Carbono Zero. Inscreva-se aqui.)

Funcionários das três grandes montadoras americanas estão em greve há uma semana. As negociações se concentram em reivindicações salariais, mas algo muito mais importante também está na mesa: o futuro da indústria automotiva e de seus trabalhadores.

A principal demanda dos grevistas tem a ver com remuneração. Os CEOs de Ford, GM e Stellantis (dona de marcas populares no país, como Chrysler e Jeep, além da Fiat) receberam, na média, aumento de 40% nos últimos quatro anos, enquanto os salários dos funcionários das fábricas tiveram reajuste de 6%.

Os contratos são renegociados a cada quatro anos. A rodada atual, que se desenrola há semanas, segue longe de uma solução.

Por que a greve é importante?

  • Há o risco de uma paralisação longa, o que traz efeitos na economia americana e pode atrasar os planos de eletrificação das montadoras do país;
  • A discussão sobre o impacto social dos carros elétricos, cuja fabricação exige menos mão-de-obra, vem para o primeiro plano;
  • É mais um problema para as montadoras tradicionais, que enfrentam concorrentes 100% elétricas como Tesla dentro do país e as chinesas no resto do mundo (incluindo o Brasil); 
  • Joe Biden, que apoia as demandas dos grevistas, fez na última quarta-feira uma declaração conjunta com Luiz Inácio Lula da Silva em defesa dos direitos dos trabalhadores em geral.

Por enquanto, a paralisação atinge apenas 3 de 70 fábricas e envolve cerca de 10% dos 130 mil integrantes da United Auto Workers, a central sindical do setor.

Mas é a primeira vez que as três grandes de Detroit são atingidas ao mesmo tempo, e os líderes grevistas ameaçam ampliar o movimento a partir de hoje. 

Os trabalhadores apontam para os resultados das companhias. No ano passado, as três tiveram juntas lucro de US$ 37 bilhões, um recorde.

As montadoras dizem não ter condições de arcar com o reajuste pedido, pois precisam investir bilhões de dólares no desenvolvimento de carros elétricos – uma transformação estrutural em que elas largaram atrasadas.

Já os grevistas temem ser deixados de lado quando os tanques de gasolina forem trocados por baterias. Um dos termos que eles usam é “transição justa”.

As montadoras sabem disso. O CEO da Ford, Jim Farley, disse no ano passado que a fabricação de um carro elétrico requer 40% menos funcionários que um equivalente com motor a combustão.

E a greve tem uma dimensão política. Pesquisas indicam que a maioria dos americanos concorda com as demandas dos trabalhadores.

Junto com a paralisação dos roteiristas de Hollywood, que se veem ameaçados pela inteligência artificial, o movimento torna reais as ansiedades geradas pelas revoluções tecnológicas.

Luiz Inácio Lula da Silva e Joe Biden emitiram esta semana um comunicado conjunto afirmando que os direitos dos trabalhadores devem ser uma prioridade da nova economia verde.

Os trabalhadores

Os salários milionários dos CEOs são a bandeira do sindicato, mas a disputa é mais complexa.

Um ponto central mistura uma particularidade do mercado de trabalho americano e a onda de eletrificação.

A força do movimento sindical está em Detroit, o berço da indústria. Mas, em outras partes do país, leis estaduais dificultam muito a organização dos trabalhadores em sindicatos.

O temor é que, com o redesenho elétrico da indústria automobilística, ainda mais empregos migrem para essas regiões.

Aí entra o componente tecnológico. Os carros elétricos são muito mais simples de montar (e também de manter).

  • O motor de um BMW movido a gasolina pesa mais ou menos 200 quilos e contém 1.200 peças diferentes.
  • O motor de um Tesla Model 3 tem cerca de 50 peças e pesa 35 quilos.
  • A complexidade e o custo são transferidos para a bateria. Com exceção da Tesla, a maioria das fabricantes hoje importa esse componente da China.

O programa verde de Biden tem incentivos pesados para a criação de uma indústria doméstica de baterias – mas Ford e GM estão erguendo suas fábricas próprias justamente nos Estados hostis a sindicatos.

Esse não é um movimento novo. Desde os anos 1980, companhias europeias e asiáticas vêm se instalando em Estados do Sul americano, onde a sindicalização praticamente inexiste – e os salários são mais baixos.

O temor agora é que o fenômeno se repita com as grandes marcas do país. Desde 2015, foram anunciados investimentos de mais de US$ 80 bilhões, geradores de 95 mil empregos, em cinco Estados sulistas, de acordo com um levantamento da ONG climática Environmental Defense Fund.

Com 88 anos de história, a United Auto Workers sobreviveu à onda da automação das linhas de montagem, mas a transformação em curso apresenta um risco existencial, disse o especialista em relações trabalhistas Ian Greer, da Universidade Cornell, ao Financial Times.

As montadoras

Não foi por falta de tempo nem de aviso: a primeira fábrica da Tesla foi inaugurada em 2010, na Califórnia.

É verdade que naqueles tempos a indústria estava se recuperando de uma experiência de quase-morte depois na esteira da crise financeira de 2008.

Mas o governo americano montou um pacote de salvação bilionário; a normalidade voltou, junto com os lucros.

Carros elétricos eram uma distração: não tinham autonomia, não havia infraestrutura de carregamento, custavam caro demais. E, de repente, nada disso era mais verdade. 

Hoje, as vendas de elétricos disparam nos principais mercados, a ponto de a Agência Internacional de Energia antecipar sua previsão de declínio do consumo mundial de petróleo. 

O que se vê em Detroit é uma corrida desenfreada para recuperar o tempo perdido.

Isso significa investimentos bilionários – e, pelo menos por enquanto, prejuízos da mesma ordem. A Ford tinha estimado perder este ano algo como US$ 3 bilhões para desenvolver modelos a bateria e converter fábricas. Em julho, o número foi revisado para US$ 4,5 bilhões.

Não se trata apenas de adotar uma nova tecnologia. A chinesa BYD e a Tesla controlam partes importantes da cadeia de suprimentos

A volta à verticalização dos primeiros dias das fábricas de carros envolve reorganizar operações logísticas globais e, em alguns casos, trazer o trabalho para dentro de casa. 

A GM havia prometido atingir em 2025 a marca de 1 milhão de veículos com um novo sistema de baterias desenvolvido em parceria com a coreana LG.

A meta nem é mais mencionada: na primeira metade deste ano a empresa fabricou apenas 50 mil elétricos, a maioria com baterias antigas.

Além dos prejuízos financeiros, uma greve de longa duração representaria mais terreno perdido para as novas concorrentes

Analistas da corretora Wedbush Securities escreveram numa nota que Elon Musk , o “claro vencedor” da paralisação, já “colocou a champanhe para gelar”.