No boom das eólicas, pequenos donos de terras são elo fraco

Empresas chegam a pagar R$ 1 por hectare a agricultores, que estão sujeitos a cláusulas de sigilo e multas massivas, apontam ONGs

ONGs alertam para exploração de pequenos proprietários em contratos com geradoras de eólicas no Nordeste
A A
A A

Palco de uma expansão de parques de geração de energia eólica sem precedentes nas últimas décadas, o Nordeste brasileiro deve assistir a um crescimento exponencial desses projetos nos próximos anos, conforme avance a corrida da transição energética no mundo e tecnologias como hidrogênio verde ganhem tração.

Enquanto os olhos de empresas e governos estão voltados para o potencial de novos negócios verdes, os impactos indesejados desses projetos tendem a crescer na mesma proporção. E não estamos falando do ruído provocado pelas enormes turbinas. 

Pequenos proprietários rurais que arrendam suas terras para a instalação de fazendas eólicas têm convivido com problemas como a assimetria de informações na negociação do arrendamento de suas terras, pagamentos considerados irrisórios e multas exorbitantes em caso de desistência.

Problemas como esses foram apontados num trabalho elaborado por 40 associações comunitárias, ONGs e instituições de pesquisa, publicado ao fim de janeiro. O documento sugere salvaguardas a serem adotadas pelos setores público e privado.

“Nós precisamos da transição energética e de energia renovável, mas como podemos fazer isso sem atropelar os direitos das pessoas que estão no caminho, que vivem naquele território?”, questiona Cristina Amorim, coordenadora do Nordeste Potência, iniciativa que apoiou a publicação do documento. 

A transição energética justa já virou um mantra nos grandes fóruns de discussão climática internacionais. A lógica é que o desenvolvimento de uma nova economia verde não deveria servir para aprofundar as desigualdades, mas ser alavanca para um sistema mais inclusivo.

No caso dos parques eólicos, os problemas começam com os contratos entre empresas e pequenos proprietários, que costumam ter duração de três décadas.

Outro estudo, realizado pelo Inesc, ONG de Brasília que promove diálogo entre movimentos sociais e setor público, analisou cerca de 50 contratos de eólicas no Nordeste brasileiro, de 2008 até 2018, e chegou a sete modelos que servem como referência. “Eles funcionam quase como um contrato de adesão, como um plano de telefone, em que fica claro que não há negociação”, diz Rárisson Sampaio, pesquisador e coautor do relatório.

Os pequenos proprietários não contam com assessoria jurídica, no geral, observa o estudo. Quando isso acontece, o advogado tende a ser disponibilizado pela própria empresa, em evidente conflito de interesses. 

A Paraíba é um dos Estados em que a energia eólica avança: são 38 parques em operação, 3 em construção e outros 55 com construção não iniciada. Por lá, o Ministério Público Federal da Paraíba tem recebido um grande volume de denúncias de pequenos proprietários. 

José Godoy, procurador do MP-PB, qualifica a abordagem das empresas como “assediosa”. “Muitas das pessoas não compreendem a linguagem técnica da área de energia e jurídica, ou até mesmo são analfabetas”, diz ele, completando que cláusulas de sigilo impedem que as comunidades contem com apoio técnico na celebração dos contratos. “Nós temos uma luta de Davi contra Golias, extremamente desigual.”

R$ 1 por hectare

A forma como a remuneração se dá é outro ponto questionado pelas organizações. O pagamento é dividido em duas fases: antes e durante a operação. 

Na fase pré-operacional, as empresas medem os ventos na propriedade e garantem que poderão fazer uso daquela terra caso o projeto se concretize. Os pagamentos variam de R$ 1 a R$ 100 por hectare, o equivalente a um campo de futebol, a depender da região do empreendimento.

No ano passado, o Polo da Borborema, na Paraíba, ganhou atenção pela resistência do movimento de agricultura sustentável à instalação de usinas eólicas já licenciadas na região. 

Em um contrato de 2015 do complexo, ainda não operante, a EDP Renováveis estabelecia o pagamento de R$ 1 mensal por hectare. A área do projeto teve que encolher de 7,6 mil hectares para 2,6 mil hectares, conforme proprietários desistiram das negociações.

Em nota, a empresa afirma que não há conflitos sociais com proprietários dos oito complexos eólicos que opera no Brasil e que mantém “uma convivência harmoniosa com as atividades agropecuárias das propriedades rurais, respeitando os requisitos de segurança inerentes à natureza do empreendimento de geração de energia elétrica”.

Já quando a operação começa, a remuneração tende a ser variável, com o proprietário recebendo 1,5% do faturamento pela energia gerada em sua propriedade ou o proporcional a 1,5% do faturamento de toda a usina.

“É um dinheiro que esses agricultores não fariam em uma vida inteira só com sua atividade principal. Por uma única torre, podem receber até R$ 50 mil por ano”, diz o executivo de uma geradora que opera no Ceará.

Os movimentos sociais contestam esse tipo de afirmação e dizem que os valores podem ser bem mais módicos. Na Paraíba, por exemplo, a faixa seria de R$ 1.200 a R$ 1.800 por mês – ou seja, em torno de R$ 21 mil ao ano.

Os contratos se dividem entre pagamentos mensais ou semestrais, com a maioria sem previsão de multa moratória para as empresas em caso de atraso. Também não estão previstas indenizações para vizinhos dos empreendimentos, que também lidam com as mudanças provocadas pela usina eólica.

Dois pesos, duas medidas

Quando se trata das penalidades dos contratos, a balança pesa mais de um lado. As empresas podem encerrar os acordos quando quiserem, enquanto os proprietários precisam compensar as companhias por perdas e danos – isso significa pagar por todo o valor investido até então naquele empreendimento. No estudo do Inesc, também foram identificadas multas de valor fixo, na casa de R$ 5 milhões. 

A duração dos contratos tende a acompanhar o tempo de duração das outorgas cedidas pela Aneel, em torno de 35 anos. Os acordos vinculam os herdeiros às obrigações e têm renovação automática, o que dificulta a revisão das cláusulas contratuais. 

Os contratos são feitos com cessão de uso ou arrendamento de 100% da terra, e garantem às empresas a livre circulação de pessoas, abertura de estradas, manutenção de equipamentos e construção de estruturas necessárias para os empreendimentos.

Os agricultores podem seguir com suas atividades ao redor da torre eólica e fazer modificações em suas propriedades, desde que não atrapalhem a atividade de geração.

O uso da terra

Sem instrumentos jurídicos específicos para as relações contratuais do uso de terras na geração de energias renováveis, mesmo as condições de aposentadoria desses agricultores podem ser impactadas, diz Claudionor Vital, advogado e membro da Centrac, ONG que trabalha com agricultura familiar de base agroecológica na Paraíba.

Produtores rurais que explorem a atividade de agropecuária em área de até quatro módulos fiscais – unidade que varia de acordo com o município – podem ser caracterizados como segurados especiais na previdência. 

“Mas, para isso, podem ceder ou outorgar o uso da sua terra em até 50%, que não é o que ocorre”, diz Vital. Em consulta ao INSS, organizações sociais foram informadas de que trabalhadores rurais podem perder o direito à condição de segurados especiais por arrendar a totalidade da propriedade. 

As áreas de assentamento, sob o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), também estão na mira das empresas nos últimos anos. 

De cima para baixo

As 40 organizações que mapearam os problemas para sugerir soluções, dizem que, ainda que bilaterais, as relações entre comunidades e empresas deveriam ser de preocupação do poder público, assegurando a devida consulta prévia, livre e informada, garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho às comunidades tradicionais – como indígenas, quilombolas e ribeirinhas. 

A recomendação que fazem é que a Aneel, agência reguladora do setor, e instituições como Ministério Público e Defensorias acompanhem as negociações e os contratos.

Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), reconhece que o movimento das ONGs e outras instituições serve como alerta para a indústria eólica. Os contratos, diz ela, são o segundo maior problema do setor, depois do barulho causado pelas turbinas.

“É muito difícil dizer se um contrato de determinada empresa tem um problema específico, porque eles são bilaterais. Mas essa reclamação tem vindo das comunidades, principalmente dos movimentos [sociais], e é verídica: tem contratos com problemas, sim, e muitas empresas já estão fazendo modificações.”

Para o procurador José Godoy, do MP-PB, “a mudança tem que ser em nível de governo, principalmente pela Aneel, que regula, e o BNDES, que financia. E os órgãos ambientais federais e estaduais precisam exigir parâmetros mínimos para contratos”.

Ele bate na tecla da disponibilidade de recursos e capilaridade das empresas. “Elas têm advogados circulando agora no semiárido, enquanto conversamos.” 

O BNDES financiou, desde 2000, 70% da geração de energia adicionada no país. Só no ano passado, foram aprovados R$ 3,2 bilhões para projetos de energia eólica e outros R$ 2,5 bilhões para solar. 

Procurado para comentar sobre as exigências que faz nessas operações, o banco informou, em nota, que verifica os riscos socioambientais e os planos e programas de mitigação já contemplados no licenciamento ambiental, com base nos documentos relacionados a esse processo, e que está atento aos possíveis impactos dos projetos nas comunidades. 

As empresas 

A reportagem procurou empresas geradoras de energia eólica na Paraíba para saber quais práticas adotam para atenuar a disparidade de informações na negociação e construir pagamentos justos. Elas não concederam entrevistas e apenas enviaram notas à redação.

A EDP Renováveis, de matriz portuguesa, disse que desenvolve seus projetos “buscando o maior consenso social possível” e que mantém “uma convivência harmoniosa com as atividades agropecuárias das propriedades rurais, respeitando os requisitos de segurança inerentes à natureza do empreendimento de geração de energia elétrica”.

Do grupo Casa dos Ventos, a CdV Desenvolvimento afirmou que “mantém um processo de escuta ativa” com os públicos nos entornos de empreendimentos e que “Os contratos autorizam os proprietários a utilizar ou explorar a área da forma que lhe convier, observando para que tal uso não afete a operação, direcionamento do vento e incidência do sol, ou seja, de forma que haja harmonia entre as atividades pecuárias, de agricultura e de geração de energia renovável”.

A Neoenergia, que tem a espanhola Iberdrola como principal acionista, destaca que pratica apenas a modalidade de arrendamento de terras, “incentivando a manutenção do indivíduo no seu território original” e que analisa “os aspectos ambientais evitando áreas com sensibilidade social e ambiental”. 

A subsidiária brasileira da CTG, da China, respondeu que realizou um diagnóstico socioeconômico detalhado, levantou dados e dialogou com autoridades e líderes locais para entender as necessidades da região quando comprou o Complexo Serra da Palmeira da PEC Energia. A companhia afirmou que disponibiliza diferentes canais de atendimento e que inexistem “reclamações, investigações, ações civis públicas ou disputas judiciais (ações judiciais) contra a empresa” e que “não foram identificados problemas ou manifestações em relação aos valores de remuneração pagos aos proprietários rurais”. 

Atualização às 10h10: o grupo Casa dos Ventos respondeu por meio da CdV Desenvolvimento, que não é a unidade de negócio associada à francesa TotalEnergies, como constava na matéria. A informação foi corrigida.