Empresas se armam para ofertar energia limpa a pequenos e médios negócios

Engie, Comerc e Auren estão atrás de 165 mil clientes empresariais que passaram a ter acesso ao mercado livre de energia, antes restrito a grandes consumidores

Medidor de consumo de eletricidade
A A
A A

A preparação da Engie Brasil durou mais de três anos, e desde 1º de janeiro finalmente “o carro está na rua”, diz Gabriel Mann, diretor de comercialização da empresa francesa de energia. “Não é só uma mudança, mas uma transformação do negócio.”

Mann se refere às regras de incentivo à competição na venda de energia para empresas que entraram em vigor na virada do ano: 165 mil clientes empresariais que eram cativos das distribuidoras – as donas dos fios que chegam às nossas casas – agora podem escolher de quem vão comprar.

Assim como os grandes consumidores – pense indústrias ou uma rede de supermercados – desde a década de 1990, agora empresas de pequeno e médio porte têm acesso ao mercado livre de energia.

Isso significa de cara reduções de até 40% na conta de luz, o que em si já é um ótimo negócio. Mas as consequências vão muito além desse choque inicial no preço.

Para essa nova massa de consumidores, a eletricidade começa se tornar um insumo gerenciável com muito mais sofisticação que a simples leitura do medidor.

Receba as notícias do Reset no WhatsApp

Softwares vão aumentar a eficiência de um recurso invisível – e frequentemente desperdiçado. E será na compra de energia que muitas companhias vão “testar as águas das soluções de descarbonização”, diz Pedro Kurbhi, vice-presidente de marketing da Comerc Energia, que tem a Vibra (antiga BR Distribuidora) como sócia majoritária. A empresa é uma comercializadora, que compra energia e revende no mercado livre.

Mas tudo isso virá num segundo momento. Agora, o que está em marcha é uma corrida para conquistar clientes que até pouco mais de um mês estavam inacessíveis. Assim como a Engie, outras empresas estão redesenhando seus negócios para serem competitivas no novo modelo.

De dentro para fora

Até a nova regra entrar em vigor, o mercado livre era aberto apenas aos clientes com demanda acima de 500 kW por mês, com fatura em torno de R$ 65 mil. Agora, quem está ligado à rede de alta tensão e tem a conta de luz por volta de R$ 10 mil já pode fazer a migração. 

A fatia do consumo elétrico do país negociado no mercado livre terá avanço modesto em termos percentuais: de 39% para 46%, segundo estimativa da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel).

Em números absolutos, porém, o salto pode ser considerável, de 36 mil para 165 mil unidades consumidoras.

Tanto para quem defende seu território quanto para as novas entrantes, isso significa crescimento das equipes de vendas, novas políticas de remuneração, digitalização de processos de venda e investimento em marketing. 

A francesa Engie, que atua na geração, comercialização e transmissão de energia no Brasil e faturou R$ 2,8 bilhões em 2022, usa bases de dados públicas para direcionar seus esforços. Ao mesmo tempo em que realiza uma procura minuciosa, a companhia faz campanhas de amplo alcance.

Basta ligar a TV, assistir aos comerciais no YouTube ou prestar atenção aos outdoors e é grande a chance de se deparar com uma propaganda da Engie – sempre atrelada ao tênis, esporte que patrocina e que a equipe de marketing ligou ao mundo dos negócios. 

Inspirada na telecomunicação

A Comerc, que registrou lucro líquido de R$ 102,9 milhões em 2022, fechou uma parceria com o Itaú para usar seu canal de relacionamento. A empresa também trouxe para a diretoria comercial de varejo Manuel Campos Jr., um executivo com passagens pela Oi e pela Claro.

A Auren Energia, comercializadora, e criou uma joint-venture com a Vivo no ano passado para aproveitar as oportunidades que surgem com a abertura do mercado.

Os nomes da telefonia não aparecem por acaso. Muitos comparam esse momento do setor elétrico ao vivido pelas telecomunicações no fim do século passado, com a privatização da rede fixa e o crescimento explosivo do celulares logo na sequência.

Hoje, 25 anos mais tarde, a competição pelos melhores clientes é feroz – e isso inclui ofertas sob medida para o adolescente que quer assistir streaming no metrô ou o executivo que precisa de fibra óptica para fazer reuniões online quando trabalha de casa.

“Nosso setor vai passar por uma evolução parecida”, diz Lucas Zajd, diretor de regulação e inteligência de mercado da CPFL Soluções, focada em comercialização e eficiência energética. O Grupo CPFL, controlado pela chinesa State Grid, atua em todos os segmentos e lucrou R$ 5,2 bi em 2022. 

“Você pode ter uma padaria e uma clínica que consome mais com exame de ressonância. Muda completamente o público e a forma de atendimento.”

Educação

Parte do esforço é educativo. Essa nova leva de clientes que está entrando no mercado livre está acostumado a pagar uma conta mensal, e só.

Quem fizer a transição assina contratos que duram entre três e cinco anos, tipicamente. “A sopa de letrinhas tem que ser trazida de forma mais simples: você está comprando essa energia, vai ter tal desconto e pagar tanto por ela”, diz Diogo Baraban, diretor comercial da EDP Brasil, maior comercializadora varejista do país, que obteve lucro de R$ 1 bi em 2022.  

E o chamariz do preço mais baixo não vai durar para sempre. O setor está com sobreoferta de energia elétrica, o que por enquanto dá vantagem competitiva ao mercado livre em relação ao cativo, mas não representa garantias para o futuro. 

O que vai importar é o “algo a mais”, diz Luiz Augusto Barroso, CEO da PSR, consultoria especializada em energia. “Pode ser desde a reputação do vendedor, a oferta de um financiamento ou uma fonte de energia renovável”. 

Parte importante da formação dos descontos se dá pela redução na “tarifa do fio”, que por ora cai pela metade com a geração a partir de fontes renováveis.  O que também não deve durar para sempre em um país onde 93% da geração elétrica já vem de fontes renováveis, conforme estudo recém-publicado pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).

Livre e limpa

Existe também a expectativa de que empresas de menor porte em algum momento façam questão que 100% de sua eletricidade seja livre de emissões de CO2 – e sintam a necessidade de comprovar isso.

O motivo pode ser um desejo de contribuir com o planeta ou então a pressão de clientes de grande porte que precisam descarbonizar sua cadeia de suprimentos.

Grandes corporações já exigem I-RECs, uma certificação global que atesta que a energia usada em seus processos vem de fontes renováveis.

Somada à abertura do mercado livre de energia, o avanço da geração distribuída no Brasil e a crescente demanda por soluções energéticas – de baixas emissões ou que garantam eficiência – devem garantir um setor bastante movimentado no país pelo futuro próximo.

*Atualização às 11h14: a matéria citava a Engie Brasil como distribuidora de energia, mas a empresa atua nos segmentos de geração, transmissão e comercialização.