Condenação da CVM na Vale é divisor de águas em dano socioambiental

Autarquia absolveu Fabio Schvartsman, ex-presidente da companhia, e condenou o ex-diretor Gerd Peter Poppinga a pagar multa de R$ 27 milhões 

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O julgamento da Comissão de Valores Mobiliários sobre o dever de diligência do alto escalão da Vale em relação à tragédia em Brumadinho (MG), encerrado na semana passada, é emblemático do ponto de vista de governança e um divisor de águas na discussão sobre a responsabilidade dos administradores por danos sociais e ambientais no Brasil.

A diretoria da CVM decidiu, na última quinta-feira, 19, absolver o então diretor-presidente, Fabio Schvartsman, de forma unânime. Mas condenou o ex-diretor executivo de ferrosos e carvão, Gerd Peter Poppinga, a pagar uma multa de R$ 27 milhões – não houve inabilitação do executivo para exercer funções em companhias abertas. O desastre, ocorrido em 2019, matou 272 pessoas.

Ao isentar o presidente e condenar o diretor, o colegiado entendeu que Schvartsman não foi alertado sobre os riscos e não tinha a obrigação de conhecê-los e gerenciá-los diretamente, mas que essa era a responsabilidade de Poppinga.

Diferentemente do que ocorre nas centenas de processos legais contra a companhia, o objetivo da CVM não é julgar a responsabilidade da Vale em relação às vítimas do rompimento da barragem. No papel de regulador do mercado de capitais, a autarquia conduziu um processo administrativo para avaliar se os diretores cumpriram ou não com as obrigações de suas funções e se agiram como esperado na condução dos negócios da companhia. 

“Sempre tivemos discussões sobre o dever de diligência, mas agora ele se expande e encontra questões ambientais, sociais e de governança”, diz Henrique Antunes, sócio da prática de mercado de capitais e ESG no Mattos Filho. “Esse caso da Vale é inédito por essa razão: ele traz um dever de diligência por um dano ambiental, não por qualquer outra falha, como questões contábeis no caso da Americanas.”

A decisão é um “divisor de águas” no direcionamento para companhias e administradores de como avaliar o dever de diligência quanto à sustentabilidade, comenta uma advogada. “A sua existência é excelente para que se comece a dar um norte do ponto de vista corporativo. Diretores e conselheiros terão que pensar quão pró-ativos eles devem ser na busca por informações que não são as usuais em sua agenda. Eles terão que entender se as informações que chegam sobre a segurança de uma operação ou cumprimento de normas ambientais, por exemplo, são suficientes.”

O caso de Brumadinho se deu quatro anos após do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG), que pertencia à Samarco, joint venture da Vale com a BHP Billiton. Até então, esse havia sido o maior desastre ambiental do país e culminou na morte de 19 pessoas. 

“Do ponto de vista de governança corporativa, acho que tudo isso mostra a necessidade de uma cultura organizacional que promova transparência, melhor comunicação e responsabilidade em todos os níveis hierárquicos de uma empresa”, diz Geraldo Ferreira, conselheiro independente. “É fundamental que os conselhos de administração e a direção estabeleçam mecanismos mais robustos de supervisão e controle, ligados a riscos operacionais e à diligência. Governança não pode ser apenas box ticking.”

Punido, Poppinga poderá apresentar recurso com efeito suspensivo ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional.

A acusação

O processo administrativo foi instaurado pela Superintendência de Processos Sancionadores (SPS) da CVM, que acusou os diretores de não terem demonstrado à diretoria executiva e ao conselho de administração da Vale a devida importância dos riscos de rompimento das barragens – mesmo após o desastre de Mariana e as mudanças geradas na legislação brasileira.

A base do processo está na Lei nº 6.404, de 1976, que afirma que o administrador da companhia de sociedade por ações deve empregar “o cuidado e a diligência” no exercício de suas funções.

“É fácil olharmos em retrospecto sobre algo que já ocorreu. Aqui é preciso cuidado porque a obrigação de dever da diligência é sempre uma obrigação de meio e nunca de resultado”, diz Antunes. 

O julgamento do processo teve início em 1º de outubro, quando o diretor relator Daniel Maeda votou por condenar Poppinga e absolver Schvartsman. A sessão foi suspensa a pedido do diretor Otto Lobo e então retomada no último dia 19. 

A condenação 

Condenado a pagar uma multa de R$ 27 milhões, Poppinga era presidente do conselho da Samarco durante a tragédia em Mariana e diretor executivo de ferrosos e carvão da Vale à época de Brumadinho. 

Como diretor executivo, as funções de Poppinga envolviam não apenas gestão e liderança, mas também o acompanhamento e monitoramento mais próximo das operações e gestão de risco ligado à sua área. Em seu depoimento à CVM, ele frisou sua falta de conhecimento sobre assuntos técnicos de sua diretoria executiva. 

Já Maeda, o diretor da CVM que atuou como relator no caso, enfatizou que é esperado que administradores se mantenham informados, questionem e investiguem temas ligados às suas diretorias, ainda que não sejam altamente especializados em cada um dos tópicos. A falta de conhecimento técnico deveria ser acompanhada por uma busca por maior conhecimento e trabalho próximo do andamento dos negócios. 

Se o executivo “tivesse estabelecido dinâmicas para ser mais participativo e presente no andamento dos negócios pelas linhas alternativas de reporte estabelecidas, estaria ciente dos potenciais problemas antes mesmo de se tornarem urgentes”, disse Maeda, que votou pela condenação de Poppinga.

O voto foi acompanhado pelo diretor Otto Lobo e pelo presidente da autarquia, João Pedro Nascimento. O diretor João Accioly, no entanto, votou pela absolvição do executivo por entender que as medidas efetivamente implementadas por ele, como a contratação de uma auditoria externa extraordinária para barragens e a criação de força-tarefa para revisar os planos de ação emergencial das mesmas, foram suficientes para cumprir seu dever de diligência, ainda que não tenham evitado o resultado trágico.

“Não há regra específica que diz que o diretor de mineração deve ler o relatório X ou o relatório Y, nem ter a formação A e não B. O que o dever geral determina é que, ao adotar determinada estrutura, desde que nos conformes da lei, o indivíduo deve se ater àquelas regras. Se lhe era facultado delegar a leitura de relatórios, e ele assim fez, não se pode dizer que há uma infração ao dever de diligência por isso”, escreve Accioly. 

Absolvição unânime

Enquanto Poppinga foi multado após o placar de 3 a 1, Schvartsman, então presidente da companhia, foi absolvido com unanimidade pelos diretores da CVM. 

O diretor presidente assumiu o cargo em maio de 2017 e permaneceu até março de 2019, dois meses após o rompimento da barragem em Brumadinho. A defesa concentrou seus argumentos na função do diretor de coordenar e supervisionar as atividades dos diretores executivos, uma vez que seria “humanamente impossível o Diretor Presidente se imiscuir em cada uma das atividades desempenhadas pelas referidas diretorias”. 

Maeda, ao votar pela absolvição, afirma que as evidências apontam que nenhum risco envolvendo o rompimento da barragem B1, de Brumadinho, foi exposto a Schvartsman. “Pelo contrário, os reportes enfatizavam que as barragens eram estáveis e que possuíam todas as certificações de segurança, conforme lhe eram apresentadas pela pessoa designada em Estatuto Social como responsável por isso, a saber, Gerd Peter Poppinga”, escreve o relator. 

O entendimento foi de que, ao ocupar a cadeira de diretor presidente, Schvartsman não tinha atribuições específicas de acompanhar de perto atividades operacionais e de gestão de risco e segurança ligadas às barragens. Diferentemente do diretor executivo, ele não teria o dever de buscar informações adicionais, de acordo com Maeda. 

Presidente da CVM, Nascimento escreveu que “o Diretor-Presidente não assume a posição de garantidor universal da Companhia, responsável por toda e qualquer falha na condução dos negócios sociais e/ou violação incorrida pelos demais administradores”, e que esse entendimento poderia levar a uma aproximação de um “inadequado modelo de responsabilização objetiva”. 

Para a advogada ouvida pela reportagem, a decisão foi coerente com os documentos e as evidências identificadas ao longo do processo. 

Já Ferreira vê de outro modo: “No fundo, o presidente da companhia e do conselho administrativos são os responsáveis por ela. Condenar apenas um diretor e não os demais superiores é no mínimo contraproducente para evitar que isso ocorra novamente em outras empresas e setores.”

Raízes da governança

No entendimento da Antunes, do Mattos Filho, a multa milionária estabelecida para Poppinga acompanhou os padrões “super altos” que a CVM tem adotado em casos que são considerados marcos na jurisprudência. 

O desfecho, além de inédito, já era esperado, diz o advogado. No ano passado, a Vale celebrou um acordo de US$ 55,9 milhões na Securities Exchange Commission (SEC, a CVM americana) pelas acusações de divulgações falsas e enganosas da empresa sobre a segurança de suas barragens. 

O caso evidencia que a governança corporativa no Brasil se transformou em um exercício de compliance, diz Ferreira. “O Brasil não tem cultura de boas práticas de governança. Ela se tornou um exercício de compliance, no qual empresas e pessoas acham que simplesmente dar um X nas demandas legais já é suficiente para se ter governança corporativa, e não o é”, afirma o conselheiro.