
A Câmara dos Deputados aprovou na madrugada desta quinta-feira (17) o projeto que cria a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, que flexibiliza e simplifica o processo de análise e aprovação de obras e empreendimentos no Brasil. O PL foi aprovado com 267 votos a favor e 116 contrários. O texto segue agora para sanção do presidente Lula.
Entre os itens controversos do projeto estão a criação da Licença Ambiental Especial (LAE), com dispensa de etapas e prioridade de análise para projetos prioritários do poder Executivo; e da Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC), baseada em autodeclaração do empreendedor – que já existe em 15 Estados para atividades de baixo impacto ambiental.
A dispensa de licenças para algumas atividades sem critérios claros; mudanças nas regras da mineração, responsável pelo maior desastre ambiental do país; e na Lei da Mata Atlântica também foram alvo de críticas.
O objetivo do PL é criar uma legislação federal unificada para o processo de licenciamento, hoje regulado por um conjunto disperso de normas federais, estaduais, municipais e resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), órgão colegiado composto por governos federal, estaduais e sociedade civil.
Em tramitação há 20 anos no Congresso, ele voltou à pauta do Senado de forma repentina em maio – em um contexto de cabo de guerra pela aprovação de licenciamento ambiental para a exploração de petróleo na Foz do Amazonas.
Foram ambientalistas e parlamentares ligados à causa ambiental que propuseram inicialmente o PL em 2004, mas durante o trâmite legislativo seu conteúdo foi se afastando da proposta inicial. Muitos dos pontos polêmicos foram incluídos pelo Senado, que propôs 32 emendas ao texto aprovado pela Câmara em 2021 – com as mudanças, o texto precisou ser avaliado novamente pelos deputados.
Uma grande polarização envolveu o debate sobre o projeto. De um lado, parte do setor produtivo (sobretudo indústria, setor elétrico e agronegócio) afirma que os processos de licenciamento ambiental atuais são burocráticos, demorados e um entrave para o desenvolvimento econômico do país. De outro, órgãos ambientais responsáveis por licenciamento, organizações da sociedade civil e pesquisadores apelidaram o projeto de “PL da devastação” e afirmam que a nova lei representa um retrocesso histórico.
Há profundas divergências sobre as reais consequências de sua aprovação, mas um aspecto é tido como certo: ele deve parar na Justiça. Durante sua tramitação, diversos parlamentares apontaram possíveis inconstitucionalidades, o que deve levá-lo ao Supremo Tribunal Federal (STF).
“A gente provavelmente vai ter muitas ações judiciais, tanto para discutir a constitucionalidade do PL, quanto questões específicas. A gente viveu isso com o Código Florestal, por exemplo. Como essas demandas levam muitos anos para serem resolvidas, elas criam uma insegurança jurídica ainda maior”, diz Renata Amaral, sócia responsável pela área ambiental do escritório de advocacia Trench Rossi Watanabe.
Isso cria uma situação paradoxal: embora o PL tenha sido motivado, em tese, por preocupações com a segurança jurídica do setor empresarial, ele pode acabar por agrava-la, diz um parecer de Luis E. Sánchez, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, e Alberto Fonseca, professor da Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto, ambos especialistas em licenciamento ambiental e avaliação de impacto.
Segundo eles, a falta de critérios técnico-jurídicos para a instituição das medidas de agilização (simplificação via LAC e isenção de licenças) e a menor participação de órgãos e autoridades intervenientes poderá culminar em aprovação de empreendimentos que geram significativa degradação ambiental e que estariam, portanto, vulneráveis a sanções administrativas, inquéritos e ações judiciais.
Três esferas
O licenciamento ambiental é obrigatório para empreendimentos e atividades que utilizem recursos naturais ou que possam causar degradação ambiental. Ele pode ser realizado em nível municipal, estadual ou federal, a depender da abrangência e impacto previsto. A regra básica é: quanto maior o impacto, mais alta a esfera responsável.
No âmbito federal, o Ibama é o órgão responsável quando: o empreendimento afeta mais de um Estado, casos de rodovias federais, gasodutos, linhas de transmissão elétricas; há impacto em terras indígenas, unidades de conservação federais ou em águas de domínio da União; e para atividades nuclear e de exploração de petróleo e gás offshore.
A maioria dos licenciamentos no Brasil é feita por órgãos ambientais estaduais. Eles avaliam empreendimentos cujos efeitos são restritos ao território do Estado. São os casos de usinas hidrelétricas de pequeno e médio porte; loteamentos urbanos; e indústrias químicas, mineradoras ou agropecuárias cuja atividade se dará dentro das fronteiras estaduais.
Já os municípios podem licenciar atividades com impacto local, desde que tenha um órgão ambiental estruturado e habilitado pelo Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) – do contrário, o licenciamento cabe ao Estado. Tipicamente são pequenas indústrias, postos de combustíveis, lava-rápidos, condomínios, oficinas, padarias e marcenarias.
Autodeclaração
O licenciamento ambiental por autodeclaração já existe no âmbito estadual em 15 dos 27 entes federativos do país. São eles: Amazonas, Tocantins, Acre, Ceará, Paraíba, Alagoas, Bahia, Mato Grosso, Goiás, Distrito Federal, São Paulo, Espírito Santo, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, segundo levantamento do escritório de advocacia Trench Rossi Watanabe.
Dessa forma, o PL nacionaliza o procedimento, ampliando-o para todos os Estados, mas também aumenta o seu escopo. Nos Estados, o licenciamento por adesão é permitido apenas para empreendimentos de pequeno porte e impacto, mas o PL o prevê também para os de médio porte.
O STF já analisou a constitucionalidade do instrumento. Recentemente, ações questionaram a simplificação do processo de licenciamento da Bahia e do Rio Grande do Sul. Os ministros decidiram que ela só pode se aplicar a atividades de pequeno potencial de impacto ambiental, e a declararam inconstitucional para atividades de médio ou alto potencial degradador do meio ambiente.
“O projeto vai na direção contrária, ele estende para médios”, diz Bruno Teixeira Peixoto, advogado, consultor e professor de Direito Ambiental da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Ele tem muitas lacunas de critérios técnicos, faltam requisitos para definir a natureza das atividades e porte dos empreendimentos, por exemplo. Isso abre um leque discricionário absurdo, com espaço para Estados e municípios definirem esse parâmetro de potencial poluidor.”
Uma das críticas é a de que poderia haver uma flexibilização grande das licenças nos diferentes Estados, o que geraria um movimento de “shopping de licenciamento”, em que o empreendedor escolhe onde seria mais fácil obter a licença.
“Mas essa possibilidade já existe, com Estados que já têm sistemas por adesão”, diz Amaral, da Trench Rossi Watanabe. “Existe uma distorção que é achar que o empreendedor sempre prefere um sistema mais frágil, quando, na verdade, ele precisa é de previsibilidade.”
Segundo ela, é mais razoável que o empreendedor prefira estar em um Estado em que o licenciamento seja mais robusto, em que os prazos são cumpridos, do que estar em um lugar em que não há previsibilidade e possibilidade de comprovar regularidade.
O paralelo que se faz é com outro instrumento autodeclaratório, o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Ele foi criado pelo Código Florestal para combater e monitorar o desmatamento. O documento é preenchido pelo proprietário rural, e cabe a cada Estado validar as informações. O CAR tem cadastradas mais de 7 milhões de propriedades, mas apenas 1% delas foram validadas, segundo dados do Imaflora, uma ONG ambiental, levantados para o AgFeed.
O PL muda o foco da análise para a fiscalização. O presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, disse que se houver “uma proliferação de auto licenças” o órgão vai precisar trocar o analista de licenciamento pelo fiscal. “Vou ter que investir muito mais em fiscalização do que em licenciamentos”, disse em entrevista à Agência Infra.
Licenciamento especial
Uma das mudanças relevantes que o PL traz é a criação da Licença Ambiental Especial (LAE), incluída pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). A modalidade cria o conceito de “empreendimentos estratégicos”, a serem definidos via decreto presidencial.
Os projetos selecionados terão prioridade na análise do licenciamento e serão dispensados das três etapas tradicionais do licenciamento: licenças prévia, de instalação e de operação. Hoje, as três licenças são concedidas com processos de análise distintos e podem levar anos para serem emitidas.
A lei cria um procedimento especial de apenas uma fase e define um prazo máximo de 12 meses para análise. O texto da emenda não traz critérios para definir quais operações seriam beneficiadas com o novo modelo.
“É uma medida que acelera processos e atropela o interesse público. Quem vai definir quem merece um licenciamento especial ou não?”, afirma Mariana Lyrio, assessora de políticas públicas do Observatório do Clima. Especialistas apontam que a modalidade foi desenhada sob medida para agilizar a liberação de projetos de exploração de petróleo, como o da Foz do Amazonas.
Dispensa de licença
O PL também dispensa de licenciamento algumas atividades, entre elas atividades agropecuárias, obras de saneamento, instalação de torres de transmissão de energia e a manutenção de estradas já existentes. O texto define critérios genéricos e subjetivos para a dispensa, o que pode abrir brechas a depender da interpretação.
Segundo Peixoto, da FGV, são quatro os critérios mínimos consagrados para definir exigência ou dispensa de licenciamento: natureza da atividade, porte, potencial poluidor e a sensibilidade ou vulnerabilidade do meio. “Esses quatro requisitos mínimos deveriam constar desse PL, em cada dispensa ou exigência do licenciamento. Ora ele aparece, ora não aparece”, diz.
Também faltam critérios gerais no projeto de lei para a avaliação de impacto ambiental (conhecida como AIA), segundo o parecer dos professores da USP e da Universidade de Ouro Preto. Eles avaliam que, apesar de o texto tratar a AIA como uma “diretriz” do licenciamento ambiental, na prática, propõe a regulação deste instrumento de forma a restringir seu uso para casos mais raros de licenciamento de projetos de grande porte.
“Toda análise do PL precisa se atentar para a questão do vínculo do licenciamento ambiental com a AIA, tendo em vista que, como concluem há décadas numerosos estudos acadêmicos, a efetividade do licenciamento ambiental depende da devida avaliação dos impactos dos empreendimentos e em diferentes escalas”, diz o parecer.
Mineração
A mineração já saiu e entrou no escopo do PL algumas vezes. O setor é responsável pelo maior desastre ambiental no Brasil: o rompimento da barragem da Samarco, ocorrido em novembro de 2015 em Mariana (MG), matou 19 pessoas e levou mais de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos tóxicos para o Rio Doce. Controladoras da mineradora, Vale e BHP fecharam acordo de R$ 170 bilhões com autoridades brasileiras para indenização e reparação dos danos.
O projeto retira do Conama a atribuição de definir regras de licenciamento para grandes projetos do setor, sem indicar com clareza qual órgão assumirá essa função. Segundo a assessora do Observatório do Clima, isso abre um vácuo regulatório que pode abrir as portas para a aprovação de projetos de alto impacto ambiental sem a aplicação de critérios técnicos claros.
O setor havia sido excluído do projeto em uma primeira aprovação pela Câmara, em 2021, mas voltou ao texto pelas mãos da senadora Tereza Cristina (Progressistas-MS), ex-ministra da agricultura do governo Bolsonaro.
Raul Jungmann, presidente do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), considerou a medida importante para o país “na medida que significa bilhões de investimento, empregos e impostos” e agradeceu ao Senado pela volta do setor ao texto.
Em vídeo publicado nas redes do Ibram, ele diz que a nova lei “em nada altera o rigor e a disciplina com que são definidos os projetos que visam a segurança das pessoas e das barragens”. Jungmann destacou que a política nacional de segurança de barragens já está definida na Lei 14.06 de 2020 e na Resolução 95 da Agência Nacional de Mineração (ANM).
Mata Atlântica
O texto do Senado que voltou para a Câmara revoga partes da Lei da Mata Atlântica (lei nº 11.428/2006), permitindo que áreas de vegetação mais madura possam ser suprimidas sem análise prévia.
A lei atual estabelece que a supressão de vegetação primária e secundária depende de autorização dos órgãos estaduais competentes e, em alguns casos, do Ibama. Na Mata Atlântica restam apenas 24% da floresta original.
“As alterações propostas acabam com a Lei da Mata Atlântica”, diz os conselheiros da ONG SOS Mata Atlântica, em ofício enviado ao deputado Zé Vitor (PL-MG), relator do PL, pedindo a rejeição dessa emenda. O documento é assinado pelos empresários Pedro Passos (do conselho de administração da Natura) e Roberto Klabin (do Grupo Klabin).