Tenho mais de 25 anos de estrada com temas de clima e natureza em um contexto econômico-financeiro – não à toa, meu primeiro livro, em 2003, nasceu das discussões sobre crédito rural concedido desconsiderando compliance ambiental – e comemorei quando os padrões recomendados para divulgação de dados financeiros relacionados a sustentabilidade (S1) e de dados climáticos (S2) foram divulgados pela IFRS em junho de 2022.
Mas foi em outubro de 2023 que eu quis mesmo soltar fogos. Alinhada à recomendação da Iosco, a CVM trouxe esses padrões para nosso ambiente regulatório brasileiro, tornando-os mandatórios para empresas de capital aberto a partir do exercício fiscal de 2026, com primeiro relatório a ser apresentado em maio de 2027.
Naquele momento, tive certeza de que teríamos um rearranjo das placas tectônicas, com possíveis terremotos. Era certo que o efeito imediato miraria no custo de observância e desvio do foco na geração de valor, como efetivamente o foi – até há pouco eu ouvia que “a CVM vai voltar atrás” ou “a CVM vai prorrogar o prazo etc”.
Só que também era certo que efeitos imediatos comprovariam, finalmente, que riscos e oportunidades materiais de clima e natureza eram temas que deveriam fazer parte da agenda das lideranças porque impactam o bottom line e a longevidade do negócio. É aqui que estamos hoje!
Por que esse rearranjo das placas tectônicas é tão bem-vindo?
Selecionei quatro pontos.
1 – Elaborar S1 e S2 demanda trabalho colaborativo, com humildade para aprender novos temas sob nova perspectiva, respeitando as competências técnicas.
As áreas financeira e de sustentabilidade precisam liderar conjuntamente essa tarefa, além de trazer profissionais e dados de outras áreas do negócio. São relatórios construídos a muitas mãos. Sim, isso significa resiliência e combinação de competências técnicas para algo novo. Todos vão aprender juntos.
2 – Construir a materialidade financeira para dados de natureza e clima é tarefa inovadora; ninguém tem expertise nisso.
Aqui vale uma respirada funda. Times financeiros precisam aposentar a matriz de materialidade financeira, velha conhecida e construída exclusivamente com a revisão de retrovisor da contabilidade tradicional. Times de sustentabilidade precisam aposentar a lista de temas materiais do exercício da materialidade de impacto que mira reportar a todos stakeholders, o foco é priorizar o que é material afetando fluxos financeiros e reportar para investidores e credores.
Não bastasse isso, o conceito da materialidade financeira é subjetivo ao cubo: as informações são materiais se sua omissão, distorção ou obscurecimento puder razoavelmente influenciar as decisões que investidores e credores tomam com base nesses relatórios.
Demanda acrescentar forward looking: análise dos possíveis eventos futuros considerando seus efeitos sobre valor, momento, incerteza de fluxos de caixa futuros no curto, médio e longo prazo e a série de possíveis resultados juntamente com sua probabilidade nesse intervalo são passos nesse caminho.
Demanda reavaliar o binômio probabilidade-impacto. Resultados de baixa probabilidade e alto impacto que podem ser materiais individualmente ou em combinação com outros resultados de baixa probabilidade e alto impacto.
Demanda incluir longo prazo no jogo. Independentemente do momento de ocorrência, riscos ou oportunidades de sustentabilidade/clima que possam razoavelmente influenciar decisões dos investidores e credores podem ser materiais.
Demanda avaliar se dependências (de capital natural) e impactos (externalidades negativas do negócio) diretos e indiretos (na cadeia de valor) podem ser materiais.
Ouvi a própria vice-chair do ISSB, Sue Lloyd, em passagem pelo Brasil em 2024, afirmar em alto e bom tom que, se os impactos são materiais, são de reporte obrigatório. Na hora, me lembrei do caso em que a SEC multou empresa por deixar de divulgar riscos financeiros relacionados à contaminação por mercúrio de uma unidade localizada no Nordeste brasileiro. Logo pensei nas milhares de áreas contaminadas no Brasil e quantas delas irão aparecer nos relatórios S1 logo mais (uau!).
Não tem thresholds quali ou quanti definidos. O que temos é um roteiro para construção da materialidade financeira.
3 – S1 e S2 impõem gestão estratégica de riscos e oportunidades de natureza e clima materiais ao negócio. R.I.P. check the box!
Investidores e credores têm que entender se seus processos para identificar, avaliar, priorizar e monitorar os riscos e oportunidades de clima e natureza estão integrados e informam o processo geral de gerenciamento de risco e a estratégia corporativa.
Aos desavisados que acreditaram que os desvios geopolítico do mundo iriam manter dados de natureza e clima na caixinha do check the box regulatório, sinto informar: isso aqui é exercício de inteligência de negócios, atualiza a gestão de risco e estratégia corporativa, mudando o rumo de modelos operacionais da economia linear altamente emissora de carbono!
4 – Riscos e oportunidades materiais de clima e natureza passam a integrar deveres fiduciários dos administradores.
Não estamos discutindo boas práticas, compromissos voluntários de net zero e de reciclagem de plásticos ou coisas parecidas. Aliás, mesmo que as regras sobre divulgação mudem no mundo, os deveres fiduciários dos administradores para gerenciar riscos climáticos e de natureza permanecem.
Como quaisquer outros riscos e oportunidades materiais, clima e natureza entram – finalmente – como itens mandatórios para avaliação dos conselhos de administração, de seus comitês de assessoramento e dos diretores estatutários.
O trabalho conjunto e qualificado dos comitês de auditoria e de sustentabilidade no suporte ao time executivo para o preparo da materialidade financeira e identificação de riscos e oportunidades materiais a serem divulgados (e auditados) será de extremo valor aos conselhos de administração, principalmente nos primeiros anos de aprendizado do mercado brasileiro.
Teremos tempos diferentes e muito interessantes à frente! Está quase passando da hora de arregaçar as mangas e começar os trabalhos. Boa diversão!