De um típico executivo do mercado financeiro, nos últimos anos, João Paulo Pacífico se transmutou no que ele mesmo batizou de ‘CEO ativista’.
Com milhares de seguidores nas principais redes sociais — são 19 mil no TikTok, 30 mil no Instagram e quase meio milhão no Linkedin — , tornou-se um defensor enfático, e barulhento, de um capitalismo mais inclusivo e de múltiplas causas sociais.
A mudança se refletiu também no visual: aos poucos as roupas formais deram lugar a camisetas coloridas com frases irreverentes e, por vezes, até bermudas. O cabelo, antes bem curto, hoje em dia anda preso por um elástico num rabo de cavalo.
Fundador há 13 anos de uma das maiores securitizadoras do mercado, a Gaia, Pacífico vendeu o negócio em março deste ano para uma de suas concorrentes, a Opea (antiga RB Securitizadora), controlada pelo fundo da Jaguar Growth Partners.
Para as mãos da Opea, sob a marca Planeta, foram quase todas as áreas e operações da securitizadora, que desde sua fundação estruturou e vendeu cerca de R$ 20 bilhões em títulos de dívida.
Pacífico reteve a marca Gaia e passou a se dedicar exclusivamente a algo que já vinha recebendo quase toda sua atenção nos últimos anos: estruturar operações de crédito para negócios com impacto social e ambiental, como emissões para financiar a agricultura familiar e orgânica do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ou projetos de moradia popular.
Se o movimento já era atípico, um mês atrás ele surpreendeu ao dizer que estava transferindo o controle acionário da Gaia e todos os recursos que recebeu pela venda da Planeta a uma ONG dedicada a gerar impacto.
A decisão veio a público logo depois de o americano Yvon Chouinard anunciar a doação da sua empresa de equipamentos esportivos Patagonia para uma estrutura de fundos e trusts que investirá o lucro do negócio no combate às mudanças climáticas. Mas a ideia começou a fervilhar na cabeça de Pacífico bem antes disso.
“Depois da venda comecei a refletir sobre receber o dinheiro. Era muito mais do que eu tenho, mas eu iria me sentir mal se ficasse com ele”, diz Pacífico.
Nesses anos todos de mercado financeiro, diz ter construído um patrimônio que dá a ele e a sua família um padrão de vida confortável. Suficiente.
“Não que eu tenha uma quantidade bizarra de dinheiro. Mas acho que a gente começa a refletir sobre o que é suficiente. Tem muita gente que não entende que tem o suficiente e está sempre em carência. São aquelas pessoas viciadas em dinheiro, que sofrem pelo dinheiro.”
Pai de duas filhas, diz que também não queria deixar a Gaia como herança para que elas tenham total liberdade de escolher o que querem fazer na vida. E a esposa Carolina? “Não sabia como ela iria reagir, mas ela aceitou muito bem e foi super parceira.”
Gestora e aportes
A ONG Grupo Gaia será controladora da securitizadora e de outras empresas que Pacífico quer montar para permitir o investimento financeiro em negócios com impacto social e ambiental, inclusive uma gestora de fundos que deve ser aberta no próximo ano.
Uma plataforma de crowdfunding também está nos planos.
“Mas sempre trabalhando só com dívida, nunca com equity. É o que sabemos fazer e causa um impacto maior. Com equity eu tenho que ser sócio e depois vou ter que vender o negócio. Com dívida, o negócio continua com o dono. E ainda posso fazer dívida com associações e cooperativas. É muito mais potente no impacto.”
Com os recursos da venda da Planeta, além de estruturadora das operações, a Gaia passou a ser também investidora.
“Definimos um limite de até R$ 1,5 milhão de aporte por operação”, diz Pacífico. Em alguns casos, isso significa comprar a operação inteira. Como no caso recente de uma emissão estruturada para o MST para financiar a compra de uma empacotadora a vácuo para feijão orgânico.
De empresário, Pacífico passará a diretor da ONG, recebendo um salário no lugar dos dividendos.
Máquina de desigualdade
De família de classe média, Pacífico fez faculdade de engenharia na Mauá, mas foi logo para o mercado financeiro. Primeiro na Rio Bravo Investimentos, do ex-BC Gustavo Franco, e depois no Banco Matone.
Nos 20 anos de carreira até decidir doar sua empresa, ele diz que viveu um processo de ‘ir saindo da bolha da lógica financeira’.
“Hoje temos três grandes problemas no mundo: a ameaça à democracia, a questão ambiental e a desigualdade. E nesse último o mercado financeiro tem um papel muito grande, porque é uma máquina de desigualdade. Quem tem mais dinheiro, tem muito mais facilidade de acumular. Isso é surreal”, diz.
Para ele, a existência de bilionários é uma disfunção do sistema. “Nossa sociedade cria ídolos na área de negócios e vários deles que são aplaudidos não fizeram bem nenhum a não ser acumular muito dinheiro. Sou crítico a modelos como Jorge Paulo Lemann e Guilherme Benchimol”, dispara.
“Ah, mas o bilionário mereceu. Não. Para você ganhar mais, você tem que pagar menos para os outros. Se ele pagasse o fornecedor de forma mais justa, se ele pagasse salário de forma mais justa para os funcionários, se tivesse outra cabeça, não precisava ter tanto. É uma mentalidade que a Faria Lima aplaude.”
A fundação da Gaia, em 2009, foi uma tentativa de criar um ambiente mais humano para trabalhar. “Mas até então se tratava de continuar fazendo as mesmas coisas, mas num ambiente melhor.”
A virada
A chave para começar a levar o impacto para dentro das operações financeiras só virou mesmo em 2016, quando foi procurado por Marco Gorini, cofundador da consultoria Din4mo.
Gorini havia gastado sola de sapato sem nenhum sucesso em reuniões na Faria Lima para emplacar uma debênture para dar crédito a clientes da Vivenda, negócio voltado para reformar moradias populares nas periferias. “Quando eu vi o negócio da Vivenda fiquei encantado e disse que a gente ia fazer.”
A operação saiu e foi toda vendida para clientes do private bank do Itaú, tornando-se uma referência quando se trata de mostrar que é possível usar instrumentos de mercado para gerar impacto social.
Pacífico diz que a ideia se fixou de vez na sua cabeça quando, depois de receber João Pedro Stédile, o líder do MST, para uma reunião na Gaia, passou a conhecer o movimento de perto e decidiu ajudar a financiar a sua agricultura familiar via instrumentos financeiros. A estreia do MST no mercado de capitais foi em maio de 2020.
Na nova fase da Gaia, agricultura familiar será um dos cinco setores prioritários, ao lado de habitação, geração de renda, energias renováveis e educação. Em cada uma dessas frentes há operações em estruturação – inclusive novas emissões do MST.
E até mesmo no universo do impacto, Pacífico acha que cabe contestar verdades amplamente aceitas.
“Sou muito crítico de pessoas que querem fazer impacto, mas querem o mesmo retorno [de investimentos tradicionais]. Então, você não quer fazer impacto, você quer que alguém faça impacto para você ganhar o mérito disso.”
Para ele, essa lógica deixa de lado o fato de que ter impacto positivo custa “Equivale a dizer: só compro essa camiseta que não usa trabalho análogo à escravidão se ela custar o mesmo que a camiseta fabricada com trabalho escravo.”