Com R$ 14 bilhões sob gestão num dos fundos de ações de maior retorno histórico do país, a Atmos trouxe um desabafo sobre a euforia em torno do ESG na sua carta aos cotistas enviada na sexta-feira, alertando que as narrativas simplistas têm suplantado a complexidade do tema.
E fez uma defesa de sua posição em Eneva, a geradora de energia térmica à base de gás natural que é uma das maiores bolas divididas quanto o assunto é impacto ambiental, especialmente por conta da sua posição também em ativos de carvão.
“Em uma indústria que persegue narrativas para alcançar o pote de ouro – vide Pipes, Dividendos, Small Caps, Compounders, Tecnologia e Metaverso –, o ESG, a despeito de sua enorme importância, periga cair em uma caixa temática sem a reflexão adequada”, escrevem os gestores.
“A pauta ESG tem uma importância expressiva no legado que a geração atual pode transmitir para as seguintes. De certa forma, determinados fanatismos ou radicalismos são instrumentos relevantes para tirar o mundo de uma inércia aflitiva. Mas a ansiedade para tratar de assuntos complexos pode conduzir a caminhos equivocados.”
O papel do gestor
Na sua análise, a Atmos reconhece a relevância da agenda socioambiental, mas afirma que o que mudou foram as demandas da sociedade – e, portanto, os riscos e oportunidades a que empresas estão sujeitas – e não o papel dos gestores de recursos.
“O papel do gestor de recursos continua sendo o de gerar retorno ajustado ao risco em prazos longos para seus clientes. As mudanças nos padrões éticos da sociedade devem ser incorporadas à gestão não por harmonizarem com eventuais preferência pessoais do cliente ou do próprio gestor, e sim pelo impacto das empresas investidas.”
E continua, afirmando que não cabe ao gestor eleger uma moral: “A partir de um mapa impreciso, a estamina gerada pela autoconfiança de quem pensa ter todas as respostas acelera em direção a um lugar de conforto intelectual imediato. Quem vocaliza e se coloca como evangelizador assume o confortável papel de monopolista das virtudes e integridade. No entanto, escolhas erradas podem provocar desordem e um grau de irreversibilidade no sistema lá na frente.”
Além dos checklists
A Atmos vê com ceticismo a confiança excessiva nos rankings e pontuações ESG elaborados por prestadores de serviço especializados – o que seria, em sua visão, uma forma de os gestores “terceirizarem a moralidade”.
“Filtrar investimentos a partir de pontuações em metodologias ESG seria o equivalente a buscar atributos específicos, dando pouca atenção ao mecanismo causal subjacente”, escreve.
Além disso, aponta o risco de as empresas só terem incentivos para se enquadra nas métricas, sem a reflexão adequada e a mudança cultural necessária para gerar resultados efetivos para as companhias.
“Ao participar dessa corrida errática para corresponder à expectativa da sociedade atual na construção de culturas diversas sem a reflexão adequada corre-se o risco de não usufruir o benefício do movimento”, diz.
A Atmos diz ainda que não se pode esquecer que as certificadoras são empresas com objetivos financeiros e, portanto, sujeitas ao clássico desalinhamento de negócios incentivados à maximização de resultados de curto prazo.
“O problema, nesse caso, é que essas notas alimentam índices que são vendidos para o público em geral como virtuosos, supostos ‘better investments for a better world’. Em uma indústria rápida e sedenta por assets, torna-se um jogo de retroalimentação. Lépidas percepções e conclusões são construídas e expressadas em produtos consumidos por um público ávido por expiar suas culpas e, automaticamente, construir seu próprio caminho a uma vida teoricamente mais significativa.”
Uma defesa de Eneva
Numa carta separada, a Atmos dedicou 10 páginas para defender seu investimento em Eneva, que, segundo a própria gestora, vem sendo apontada como “uma espécie de vilão do portfólio”, especialmente por conta de suas usinas movidas a carvão mineral, que hoje representam quase 30% da capacidade de geração. (Impulsionada por investidores, recentemente a Eneva colocou em marcha um plano de transição energética, que prevê a saída de carvão em 2040.)
Além do argumento de que as emissões de gases de efeito estufa associadas ao setor elétrico no Brasil são pouco relevantes no Brasil, onde o desmatamento é o maior vilão, o que a casa tentou provar foi o tradeoff entre o ambiental e o social: a relevância dos ativos a carvão para manter a segurança do sistema elétrico, de uma forma efetiva em custo para a população.
Para isso, a Atmos elaborou um estudo quantitativo em conjunto com a consultoria PSR para testar hipóteses. No primeiro exercício, analisou o impacto de curto prazo do descomissionamento integral do parque térmico a carvão do Brasil, a partir de janeiro de 2022, sem nenhuma substituição – ou seja, sem nenhuma capacidade adicional de geração instalada para compensar.
O objetivo foi mensurar o valor que a disponibilidade dessas usinas traz para o sistema em um prazo insuficiente para desenvolver projetos de geração substitutos.
O resultado: no horizonte de quatro anos compreendido entre 2022 e 2025, as emissões de CO2 seriam reduzidas em 34 milhões de toneladas e o custo de operação do sistema seria majorado em R$ 36 bilhões (as premissas adotadas não estão detalhadas na carta).
Em outras palavras, o custo para reduzir uma tonelada de CO2 equivalente seria de US$ 192, consideravelmente acima dos maiores preços de emissões vigentes no mundo. (Na Europa, hoje esse custo está em cerca de 75 euros.)
Um segundo exercício buscou avaliar as alternativas para a substituição das usinas a carvão ao término dos contratos, que – no caso da Eneva – se encerram em 2026 e 2027. A conclusão foi que seria necessário um preço de emissões de pelo menos R$ 250 a R$ 300 por toneladas de CO2 para que o descomissionamento valha a pena.
A conclusão pragmática pode deixar alguns ambientalistas de cabelo em pé: “O mais adequado para o sistema seria manter os ativos já amortizados e bem operados, como é o caso do carvão importado, desligados, porém bem cuidados ao ponto de gerar energia nos momentos mais críticos de operação do sistema”.
No cerne, está a ideia de que é melhor que esses ativos fiquem com empresas responsáveis e que precisam prestar contas a investidores e reguladores do que nas mãos de estruturas sujeitas a um menor nível de cobrança e transparência.
Segundo a gestora, a transferência de controle pura e simples, sem o descomissionamento do ativo poluente, só faz bem para o relatório de sustentabilidade das empresas, as metas ESG dos executivos e a pegada de carbono do portfólio dos investidores. “No mundo real, no entanto, o óleo continua saindo debaixo da terra, só que agora sem a fiscalização da sociedade. A sujeira não sumiu, apenas foi varrida para debaixo do tapete.”
“Ao invés de pressionar as boas empresas a vender seus ativos a carvão, deveríamos fazer o oposto: pressioná-las para mantê-los, mirando garantir uma rede de proteção funcional caso o sistema venha a escorregar. Afinal de contas, quanto vale a energia quando ela falta?”, argumenta.
A gestora usa ainda o exemplo da Eneva para mostrar como uma foto isolada dos relatórios de sustentabilidade muitas vezes não é capaz de contar o filme. O projeto de Azulão Jaguatirica, que vai extrair gás natural do Amazonas e transportá-lo de forma liquefeita até Roraima para abastecer uma usina térmica, na prática, vai aumentar o inventário de emissões da Eneva.
O que não entra na conta é que o arranjo vai substituir a geração cara e poluente a óleo diesel.
“Embora esse projeto engenhoso se traduza numa redução de 244 mil toneladas de CO2e por ano, no relatório de sustentabilidade da Eneva, veremos apenas um acréscimo de 435 mil toneladas já que as 679 mil toneladas de carbono evitadas na geração a óleo diesel não constarão em lugar algum”, aponta a Atmos.