A discreta empreendedora que definiu o investimento de impacto no Brasil

À frente da Potencia Ventures há 20 anos, Kelly Michel cofundou a aceleradora Artemisia e a gestora Vox Capital

Kelly Michel fundou a Potencia Ventures, o aceleradora Artemisia e a gestora Vox Capital
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Organizações relevantes no ecossistema de impacto do Brasil, a aceleradora Artemisia, a gestora Vox Capital e o grupo de investimento Potencia Ventures, além do pioneirismo em seu DNA, compartilham a mesma cofundadora.

No início dos anos 2000, quando ainda se falava apenas em negócios sociais, a americana Kelly Michel, então com 20 e poucos anos, desembarcou em terras brasileiras trazendo na bagagem seu idealismo.

Os investimentos de impacto não existiam então, diz ela, entre risos, ao Reset, numa rara entrevista concedida durante o Potencia Day, em novembro. 

Discreta, vestindo roupa e sapatos pretos, a empreendedora e investidora palestrou em português fluente sobre a estratégia e os números da Potencia Ventures no evento para parceiros, em São Paulo.

Michel chegou ao país com a missão de ajudar ONGS a aumentarem sua receita, em trabalho voluntário para a Ashoka, organização que foca em empreendedorismo social. 

Mas, na Inglaterra, onde viveu antes (e mora hoje), tinha percebido um crescente movimento que combinava estratégias de negócios com mudanças sociais. 

“Isso tinha muita ressonância com minha história pessoal, que venho de uma família com muitos empreendedores. Falávamos de negócios na mesa de jantar”, conta. “Nunca me identifiquei com negócios só por negócios. Mas criar modelos mais sustentáveis, com maior potencial de crescimento, para provocar mudanças sociais e causar mais impacto, isso, sim, me interessou.”

Com o otimismo que considera essencial para trabalhar com impacto, Michel então buscou quem, como ela, estava disposto a apostar na área. O resultado foi a captação do fundo patrimonial, a partir de recursos doados, gerido pela Potencia desde sua fundação, em 2002.

Do fundo patrimonial saiu o capital catalítico que permitiu a fundação da aceleradora de negócios de impacto Artemisia, em 2005, e da gestora Vox Capital, em 2009, criada ao lado de Daniel Izzo e Antonio Ermírio de Moraes Neto, herdeiro do grupo Votorantim.

Pouco costuma ser dito de forma oficial sobre quem seriam esses doadores, além do fato de que são empreendedores norte-americanos bem-sucedidos. O volume do fundo também não é divulgado.

O que se comenta no meio é que Michel, nascida na Flórida, é herdeira de uma família empresária e que teria conseguido convencer os familiares a destinar uma fatia do patrimônio a investimentos de impacto. Mas a empreendedora é lacônica e ninguém do seu círculo próximo se atreve a confirmar. “Ela é discreta e não posso falar sobre o assunto”, costuma ser a resposta padrão.

Filantropia ou negócio?

Começar foi difícil, mas também divertido, na lembrança de Michel. 

“Por anos depois da minha chegada no Brasil, eu falava com pessoas do meio de negócios e elas não entendiam. Diziam coisas como ‘minha esposa faz igual, ela doa roupas para o orfanato’. E, do outro lado, eu conversava com pessoas que trabalhavam em ONGs, muito militantes, que ficavam bravas por eu falar em usar empresas para causar impacto social. Diziam que as duas coisas não se conectam e que era preciso escolher um ou outro.”

Ainda que nichados, os investimentos de impacto no Brasil crescem a cada ano. Em 2021, o volume de ativos sob gestão que seguem essa tese alcançou R$ 18,7 bilhões, de acordo com pesquisa mais recente da Aspen Network for Development Enterprises (Ande), rede global que impulsiona o empreendedorismo em economias emergentes. 

A vinda da Ande para o Brasil, assim como a do Impact Hub e Movimento Choice, que incentiva o engajamento de universitários com negócios de impacto, também contaram com o apoio das organizações fundadas por Kelly Michel.

“Ao longo desses 15 anos de existência, cumprimos várias metas que criamos para o ecossistema de impacto. E essa é uma visão que veio da Kelly: não fazíamos o planejamento só para a Artemisia, olhávamos para o todo, para o que era preciso fazer para fomentar tudo isso no Brasil”, diz Maure Pessanha, diretora executiva da Artemisia, presente na organização desde 2007. 

Dinheiro catalítico

O fundo patrimonial da Potencia serve para apoiar empreendimentos, ainda no início da jornada, que contem com soluções e inovações em educação e empregabilidade, em especial para a população de baixa renda. Para os investidores-doadores, o grupo de investimentos funciona como um teste, diz Itali Collini, diretora da Potencia no Brasil. 

“É o piloto de uma tese de investimento de impacto. Em vez de colocarem no bolso tradicional, esses investidores contam com uma entidade com esse foco, o que também facilita a verificação de retorno.” 

Nesses 20 anos, a valorização dos ativos fez com que o fundo crescesse. O grupo já investiu em quase 50 fundos de 26 instituições, no Brasil, Argentina, México, Estados Unidos, Reino Unido, Índia e Tanzânia. Desses, 48% estiveram, em 2021, no quartil superior – entre os 25% com maior retorno, com base no Pitchbook – e um terço no décimo superior.

Por aqui, Artemisia, Vox Capital, GK Partners e Crescera compõem o portfólio de gestoras que receberam entre US$$ 500 mil e US$ 2 milhões cada uma.

A Potencia investe também em fundos que não são rotulados como de impacto, mas que têm a carteira alinhada com a tese de investimento.

Desde 2017, a organização também passou a fazer investimentos diretos em startups que estão entre o pré-seed e a série A. 

Até agora, 26 empresas receberam cheques entre US$ 50 mil e US$ 2 milhões – metade delas na América Latina, como as brasileiras Letrus e 4YOU2, que promovem letramento e ensino de inglês, respectivamente. 

Nos últimos dois anos, a região foi o foco da Potencia, diz Collini, por conta do déficit de investimento em venture capital em comparação a outras emergentes, e pela crescente inclusão digital em seus países. 

Com o aprendizado ao longo dos anos, a tese do grupo de investimento também evoluiu e passou a ter um olhar mais amplo sobre o impacto das iniciativas. 

Fundada por um brasileiro no Vale do Silício, a Flourish Fi, que promove educação financeira, assim como a chilena Flevo, que faz empréstimos para financiamento estudantil, compõem o portfólio da Potencia, embora não se vendam como negócios de impacto social.

“Fazemos tudo de um ponto de vista de gestores que têm tempo e capital paciente e perene para investir, diferente de um fundo de venture capital tradicional”, diz Collini.

O caráter longevo do fundo, que não tem retirada de capital, permitiu que a gestora tivesse mais liberdade para casar o investimento com as necessidades de cada negócio. “Não há um prazo ou um cronograma determinado, apartado do que de fato está acontecendo nas empresas”, afirma Michel, reconhecendo se tratar de um luxo comparado à praxe do mercado financeiro. 

Em outra novidade no veículo, a Potencia, que até então investia em participação acionária, passou a estudar estratégias de participação nas receitas futuras, que não diluem os fundadores. 

A organização também acaba de concluir seu projeto piloto para identificar e capacitar empreendedores de grupos subrepresentados, como mulheres e negros, o Potencia Up. Dos 20 participantes, cinco devem receber o investimento da gestora.