Imposto global sobre fortunas ganha empurrão no G20, mas caminho será tortuoso

Defensores da proposta encampada pelo Brasil preveem anos de negociações para superar obstáculos; cerca de 3 mil indivíduos com mais de US$ 1 bilhão seriam taxados

Imposto global sobre fortunas ganha empurrão no G20, mas caminho será tortuoso
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O Brasil fez barulho nas últimas semanas com a proposta de criar um imposto global sobre fortunas para financiar o enfrentamento das mudanças climáticas e da pobreza extrema, angariando a simpatia de algumas das nações mais poderosas do planeta para a iniciativa. 

Ministros da Alemanha, da França e da Espanha expressaram entusiasmo pela ideia, e a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, prometeu ajuda para tirá-la do papel. “Quando os formuladores de políticas têm a vontade, há um caminho”, disse.

Mas tudo indica que o percurso para viabilizar a proposta será tortuoso. Os detalhes do plano mal começaram a ser esboçados, e até seus defensores reconhecem que serão necessários anos de negociações internacionais para superar obstáculos políticos e dificuldades técnicas. 

A proposta foi lançada à mesa pelo Brasil em fevereiro, como uma das prioridades para o período de um ano em que o país presidirá o G20, que reúne as 20 maiores economias do mundo para debater temas globais. O Brasil conduzirá as discussões do grupo até dezembro. 

O objetivo mais imediato do governo brasileiro é obter um compromisso político que faça a ideia do imposto avançar. Ele espera obter uma declaração favorável do grupo em julho, quando ministros de finanças e presidentes dos bancos centrais dos 20 países se reunirão no Rio de Janeiro. 

3 mil bilionários

O ponto de partida para o debate é uma proposta apresentada em fevereiro pelo economista francês Gabriel Zucman, diretor do EU Tax Observatory, centro de estudos abrigado na Escola de Economia de Paris. Ele deverá apresentar ao G20 um relatório sobre o assunto em junho.  

Zucman propõe um sistema que obrigue as pessoas mais ricas do mundo, cerca de 3 mil indivíduos com ativos avaliados em mais de US$ 1 bilhão, a pagar todo ano imposto de renda equivalente a 2% do patrimônio declarado às autoridades tributárias de seus países. 

Cada país arrecadaria o tributo em seu território, mas um conjunto de regras com os quais todos concordariam eliminaria brechas que os bilionários costumam usar para proteger seu dinheiro, transferindo bens e aplicações financeiras para paraísos fiscais e outras jurisdições.

“Sem cooperação internacional, há um limite para atuação dos Estados nacionais”, disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao defender a proposta num evento em Washington, em abril. “Sem cooperação, aqueles no topo continuarão a evadir nossos sistemas tributários.”

Cálculos do EU Tax Observatory sugerem que o arranjo permitiria arrecadar quase US$ 250 bilhões por ano, mais que o dobro do volume de recursos que os países ricos prometeram em 2009 que iriam transferir anualmente às nações mais pobres para ajudá-las a enfrentar o aquecimento global.

Lições aprendidas

Tentativas anteriores de taxar as fortunas dos mais ricos inspiram ceticismo. Quase todos os países que adotaram impostos semelhantes nas últimas décadas recuaram com o tempo, frustrados com as receitas obtidas e os custos elevados para fiscalizar a cobrança da taxa.

Segundo um estudo publicado há três anos pelo Insper, 12 dos 37 países que fazem parte da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) instituíram impostos desse tipo em algum momento desde os anos 1990. Somente três mantiveram a cobrança: Espanha, Noruega e Suíça.  

A França foi um dos últimos países a rever a política – e um dos primeiros a apoiar a iniciativa do Brasil agora. Emmanuel Macron se elegeu presidente criticando o imposto e o substituiu por uma taxa que incide somente sobre imóveis, sem incluir ações de empresas e investimentos financeiros. 

“A proposta em debate agora busca contornar as dificuldades que fizeram tantas tentativas domésticas fracassar, mas exigirá um esforço inédito de coordenação internacional para funcionar”, diz a economista Lorreine Messias, uma das autoras do estudo do Insper.

Em 2021, um acordo promovido por iniciativa da OCDE levou 136 países a se comprometer com um imposto mínimo de 15% sobre os lucros de grandes empresas multinacionais. Seu objetivo principal era reduzir brechas usadas pelas companhias para pagar menos impostos. 

A medida começou a ser implementada neste ano por países que já cobravam tributos acima do mínimo, incluindo os membros da União Europeia, o Reino Unido e a Suíça. As novas regras permitem que eles taxem também lucros registrados em paraísos fiscais e outras jurisdições.

Mas a maioria dos países ainda não ratificou a medida, entre eles os Estados Unidos, onde os impostos sobre lucros das empresas foram reduzidos no governo Donald Trump. Seu sucessor, Joe Biden, incentivou o acordo na OCDE, mas não tem maioria no Congresso para implementá-lo. 

A experiência é considerada encorajadora pelos defensores da criação do imposto sobre fortunas, por mostrar que a coordenação internacional é possível mesmo numa área espinhosa como a tributária, mas ela mostra também que a busca de consenso tende a reduzir seu impacto.  

Irlanda, Hungria e Estônia só aderiram ao acordo da OCDE com a condição de que a alíquota do imposto mínimo não seja elevada no futuro. Os três países são membros da União Européia e atraíram grandes empresas como a Apple nos últimos anos oferecendo impostos mais baixos. 

Brechas preservadas pelo acordo permitem que as empresas continuem transferindo atividades para jurisdições com tributação menor. O EU Tax Observatory calcula que isso reduzirá as receitas adicionais previstas pela OCDE de US$ 220 bilhões para US$ 120 bilhões por ano. 

Onde continua a discussão?

No ano passado, a decepção levou os países africanos a fazer pressão para que as discussões sobre o assunto sejam transferidas para o âmbito da Organização das Nações Unidas, que criou um comitê para discutir uma convenção internacional sobre cooperação na área tributária.

Como o G20 é apenas um fórum de discussão e articulação política, sem poder para impor decisões, será preciso definir onde o imposto global sobre fortunas será discutido se o grupo abraçar a proposta do Brasil. A preferência dos países ricos é pela OCDE, não pelas Nações Unidas. 

Em abril, o ministro da Economia da França, Bruno Le Maire, sugeriu aproveitar a experiência da OCDE nos debates sobre o novo imposto e propôs um prazo apertado para concluir a discussão, de três anos. As negociações da tributação de multinacionais duraram sete.

O uso dos recursos

No caso do imposto sobre fortunas, outra questão política delicada será a destinação do dinheiro. Se a ideia é taxar bilionários nos países ricos para ajudar países pobres a enfrentar os desafios criados pelas mudanças climáticas, será preciso definir como fazer o dinheiro chegar até eles.

A economista franco-americana Esther Duflo, vencedora do Nobel de Economia e entusiasta do novo imposto, sugeriu ao G20 que todos os recursos arrecadados sejam transferidos diretamente para vítimas de eventos climáticos extremos e governos de países vulneráveis.

Seguindo o modelo de programas sociais como o Bolsa Família, ela propõe que o dinheiro seja enviado diretamente para as mãos dos mais pobres quando desastres associados ao clima ocorrerem. Outra parte dos recursos seria doada para os governos, para ajudá-los a lidar com emergências.

Seria uma maneira de os ricos amortizarem parte do que ela classifica como uma “dívida moral” contraída pelos maiores poluidores do planeta com as nações mais pobres. Duflo estima em US$ 500 bilhões por ano o valor necessário, considerando o nível atual das emissões de carbono dos países ricos.

“A mudança climática já está conosco e, conforme ela avança, vai aumentar a mortalidade”, explicou a economista, numa entrevista ao jornal Valor Econômico. “Todo esse aumento de mortalidade vai acontecer em países pobres e entre cidadãos mais pobres.”

Para alcançar o valor sugerido para a reparação, ela sugere, além da instituição do imposto global sobre fortunas, um aumento da alíquota do imposto mínimo sobre lucros de empresas multinacionais, dos 15% previstos pelo acordo da OCDE para 18%, pelo menos. 

Mas há quem argumente que os bilionários também teriam dívidas a saldar com os países onde vivem e recolhem seus impostos, que ao longo dos anos podem ter contribuído com o crescimento de suas fortunas ao fornecer educação, saúde, infraestrutura e outros serviços públicos. 

Para os autores da proposta encampada pelo Brasil no G20, os dois pontos de vista deveriam ser analisados pelos membros do grupo. “São interesses legítimos, mas opostos”, diz Quentin Parrinello, assessor do EU Tax Observatory. “A definição exigirá um compromisso político dos países.”

O abismo da desigualdade

O grupo de Zucman calcula que os quase 3 mil bilionários do planeta pagam cerca de US$ 44 bilhões em imposto de renda como pessoas físicas por ano, o equivalente a menos de 0,5% do patrimônio líquido declarado às autoridades tributárias de seus países, descontadas as dívidas. 

Segundo o World Inequality Lab, grupo dirigido pelo francês Thomas Piketty com Zucman e Emmanuel Saez, da Universidade da Califórnia, a concentração de riqueza no topo da pirâmide aumentou nas últimas décadas, especialmente por causa do enriquecimento dos mais ricos.

De acordo com as estimativas dos pesquisadores, a fortuna dos indivíduos mais ricos do planeta, representantes de apenas 1% da população mundial, cresceu entre 6 e 9% ao ano desde 1995. A fatia da riqueza global detida pelos bilionários aumentou de 1% para 3,5%.

Ao apresentar a ideia do imposto global ao G20, Zucman sugeriu que a cobrança de uma fatia maior desses ganhos teria grande significado político. “Ela poderia inaugurar uma nova era de multilateralismo, focada na erradicação das desigualdades que corroem as sociedades democráticas”, afirmou.

Os super ricos do Brasil

A Constituição brasileira, promulgada em 1988, diz que a competência para instituição de um imposto sobre “grandes fortunas” é exclusiva da União, mas não obriga o governo a fazer nada. Desde então, dezenas de projetos de lei foram propostos por congressistas. Nenhum avançou. 

Cálculos do economista Sergio Gobetti, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base em dados divulgados pela Receita Federal sobre o Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF), sugerem que os mais ricos estão ficando ainda mais ricos no Brasil também.

Em 2022, os 154 mil contribuintes mais ricos, grupo equivalente a 0,1% da população brasileira adulta, declararam rendimentos que somaram R$ 814 bilhões, ou 12% da renda informada por todos que fizeram o ajuste anual com o fisco. Cinco anos antes, o 0,1% mais rico ficara com 9% da renda.

“O Brasil ainda tem um dever de casa a fazer e não pode esquecer disso”, diz Gobetti. “Cobramos impostos elevados sobre os lucros das empresas, mas as alíquotas efetivamente pagas pelas companhias são baixas, e grande parte dos rendimentos dos mais ricos é isenta.” 

A legislação brasileira prevê tributos equivalentes a 34% dos lucros das empresas, mas deduções e diferimentos reduzem a alíquota efetiva a menos de 20%, segundo o Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made), da Universidade de São Paulo.

Além disso, os dividendos pagos aos acionistas das empresas são isentos de Imposto de Renda no Brasil, o que beneficia os mais ricos. A taxação de 34% dos lucros das empresas é alta para padrões internacionais, mas outros países cobram imposto também sobre os dividendos. 

No governo Jair Bolsonaro, o então ministro da Economia, Paulo Guedes, patrocinou um projeto de reforma da legislação do Imposto de Renda, reduzindo a tributação imposta aos lucros das companhias e taxando os dividendos. Não houve apoio no Congresso, e a iniciativa naufragou.

O governo Lula tem a intenção de fazer coisa parecida, mas só deverá apresentar sua proposta depois que os parlamentares concluírem a regulamentação do novo imposto sobre bens e serviços criado pela reforma tributária aprovada no ano passado, o que deve demorar meses.

No Ministério da Fazenda, a aposta é que a conversa no G20 pode fazer a discussão avançar dentro de casa. “O debate internacional mostra um consenso maior sobre a necessidade de um sistema tributário mais progressivo”, afirma a subsecretária de Política Fiscal, Débora Freire.

*Atualização às 09h30: O imposto de renda pago por bilionários globalmente equivale a US$ 44 bilhões, no cálculo da EU Tax Observatory, não US$ 4,4 bilhões como constava. O valor também foi corrigido na tabela.