
Casos de problemas de governança com suspeitas de fraudes atingem o mercado de crédito brasileiro de tempos em tempos. Esses eventos eram tratados como algo que cedo ou tarde ficariam no passado. Mas a crise da Ambipar, empresa que se vendia como símbolo de uma nova economia verde e com credenciais sustentáveis, mostra que esses episódios atravessam gerações.
O Reset conversou com empreendedores, investidores e gestores de recursos para entender o impacto do caso. Há consenso de que a recuperação judicial da Ambipar foi provocada por uma questão de falta de governança e não foi motivada por problemas no modelo de negócios ou com a tese de investimento em sustentabilidade.
As reverberações começam a aparecer. Um concorrente perdeu uma captação que estava negociando quando o caso veio à tona. “Embora tenham gostado da tese e da empresa, os investidores ficaram assustados com o que estava acontecendo com a Ambipar e usaram isso como uma das justificativas para declinar a operação”, disse Ricardo Glass, fundador da Okena, que faz tratamento de efluentes e destinação de resíduos industriais.
A reação lembra o movimento que se espalhou no varejo após a crise das Lojas Americanas, em 2023, avalia Glass. “Quando uma empresa muito representativa e conhecida do segmento passa por problemas, isso gera uma onda de desconfiança generalizada em todo o setor”, disse.
Criada em 1995, a Ambipar nasceu originalmente como uma pequena empresa de manejo de resíduos no interior de São Paulo. O fundador, Tércio Borlenghi Júnior, aproveitou a demanda de empresas e cidades por serviços de descarte e gestão de resíduos para expandir os negócios.
O negócio cresceu por meio de várias aquisições, no Brasil e no exterior. Para consolidar as empresas do grupo, foi criada a holding Ambipar Participações e Empreendimentos em 2010.
Os dois principais segmentos de atuação das companhias do grupo são: (1) ambiental, com gestão e reaproveitamento de resíduos, reciclagem, economia circular e consultoria ambiental; e (2) resposta a emergências ambientais e químicas, como acidentes com produtos perigosos, vazamentos e desastres.
A rápida expansão coincidiu com o início de um período de retorno dos IPOs na bolsa brasileira. Com a abertura do capital, em julho de 2020, a Ambipar se tornou a primeira empresa de gestão ambiental listada na bolsa brasileira (B3). Com a venda das ações, ela captou R$ 1,1 bilhão para seguir crescendo com o mesmo modelo: aquisições.
O caso
A Ambipar é um curioso caso de empresa de serviços ambientais que não aparecia no portfólio de investidores e gestores focados em sustentabilidade. Isso porque a governança da companhia sempre foi um ponto de atenção.
“A Ambipar, de certa forma, acabou funcionando como um teste de estresse. Mostrou que este mercado voltado para sustentabilidade tem fragilidades assim como o mercado tradicional”, avalia Annelise Vendramini, professora de finanças sustentáveis da FGV.
Uma das crenças que sustentavam o hype do ESG era a ideia de que empresas com estratégias voltadas para a sustentabilidade ofereceriam menor risco, pois teriam uma gestão mais cuidadosa. O caso da Ambipar, diz Vendramini, mostra que “não é necessariamente assim”.
Um experiente gestor de recursos especializado em crédito observa que o balanço da empresa apresentava ‘red flags’, como parte do caixa aplicado em ativos sem liquidez e sem transparência. Quase metade do caixa da empresa estava alocado em um fundo de direitos creditórios (FDIC). Isso é típico em negócios com alto volume de recebíveis, que usam esse tipo de instrumento para antecipar receitas. Mas não é o caso de uma companhia de gestão de resíduos, diz o gestor.
No segundo trimestre deste ano, a Ambipar declarou um caixa de R$ 4,7 bilhões. Mas em setembro pediu proteção contra credores alegando justamente falta de recursos para fazer frente a uma chamada de margem de R$ 60 milhões do Deutsche Bank em um contrato de derivativos.
“Há indícios de fraude em um esquema rudimentar de triangulação de caixa entre empresas”, afirma o gestor, citando a forte desconfiança dos investidores de que parte do caixa da Ambipar estava aplicada em títulos do Master, banco que teve a liquidação decretada pelo Banco Central em novembro.
A Ambipar e o banco têm diversos pontos de contato. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) investiga uma eventual manipulação do preço da ação da Ambipar, que registrou alta de mais de 800% entre maio e agosto do ano passado. A área técnica da autarquia emitiu parecer afirmando que encontrou “indícios claros de atuação em conjunto” entre o fundador da Ambipar, o banco Master e o empresário Nelson Tanure.
Tércio Borlenghi, Master e Tanure negam que tenham atuado em conjunto ou que seriam partes relacionadas em operações que buscassem elevar a cotação da ação da Ambipar.
Contaminação
O pedido de recuperação judicial da Ambipar foi feito no Brasil e nos Estados Unidos, onde a empresa tem operações de resposta a emergências. Com isso, há a paralisação temporária de cobranças e suspensão das obrigações de dívida enquanto a companhia negocia a sua reestruturação. A dívida total da empresa é de R$ 10,5 bilhões.
O principal débito afetado foi um título verde. No ano passado, a empresa captou US$ 750 milhões com a emissão do seu primeiro green bond no mercado internacional. Um ano depois, levantou mais US$ 400 milhões, também no mercado internacional. Os recursos seriam destinados para alongar dívidas de curto prazo, melhorar os índices de alavancagem e investir em projetos de sustentabilidade.
O caso eleva o nível de cautela no mercado, que passará a exigir padrões mais elevados de diligência das empresas do setor, diz Alexandre Alvim, sócio fundador da GEF Capital Partners, gestora de private equity com foco em investimentos de impacto e sustentabilidade.
“Investidores, sejam credores, compradores de green bonds ou de equity, vão ficar mais reticentes”, afirma Alvim. “Não dá para assumir que, por ser ‘verde’ ou de um setor do ‘bem’, uma empresa já tenha governança robusta ou operações totalmente sob controle.”
Na prática, isso significa reforçar processos internos de gestão e governança para continuar acessando capital. “Crises desse tipo machucam todo mundo. Mesmo quem está saudável passa a ser visto sob o filtro do caso Ambipar”, diz.
Mas o efeito não é catastrófico, segundo três gestores ouvidos pela reportagem.
“Não acho que haja uma contaminação generalizada, como se tudo estivesse uma bagunça. Há uma compreensão de que não se trata de um problema do setor ESG ou ambiental, foi algo que poderia acontecer em qualquer outro setor”, diz Alvim.