Marfrig é a nova aposta do fundo ‘turnaround’ climático da Fama

Frigorífico é o segundo investimento de veículo que mira em grandes emissores de gases de efeito estufa

Gado no pasto
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Quando anunciou que investiria em grandes emissores de gases de efeito estufa, a Fama Re.capital não estava de brincadeira. O segundo aporte de seu fundo turnaround climático foi realizado na Marfrig, uma das maiores produtoras de alimentos de proteína bovina do mundo e líder em produção de hambúrgueres.

Quase um quinto da contribuição brasileira para o aquecimento global vem do processo digestivo de rebanhos, principalmente do arroto do gado. Somente a queima de combustíveis e a alteração do uso de solo (que conta com desmatamento para abertura de pastagens) superam os gases literalmente expelidos pelas mais de 200 milhões de cabeças de gado criadas no país. 

“Assim como na SLC, a gente não começa do zero. A companhia parte não só de intencionalidade, mas de práticas que estão acima da média do setor”, diz Tiago Gomes, sócio da Fama responsável pelo investimento. A gigante do campo SLC Agrícola foi o primeiro investimento do fundo. 

O objetivo do Latam Climate Turnaround Fund é comprar ações de empresas de setores variados, de frigoríficos e cimenteiras a empresas de energia, varejo e até bancos, para incentivar a descarbonização de suas operações.

 “É quase um cavalo de Troia. A gente compra um percentual de uma empresa na bolsa para ganhar exposição com os donos, executivos e conselheiros da empresa para engajá-los na pauta”, explica o gestor. 

O fundo da Fama comprou cerca de R$ 4 milhões em ações da Marfrig. A participação deve aumentar à medida que a captação do fundo, que está aberta, avançar. Os esforços estão concentrados em investidores internacionais. O patrimônio do fundo é de R$ 8,9 milhões, segundo dados da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). 

Boi e desmatamento

A pecuária está intimamente ligada ao desmatamento no Brasil. É a atividade responsável pela maior derrubada de árvores na Amazônia. 

Com faturamento de R$ 136 bilhões em 2023, a Marfrig tem como meta rastrear 100% de fornecedores diretos e indiretos na compra de animais para abate em sua operação até 2025, em todos os biomas. Originalmente divulgada para 2030, a meta foi antecipada em cinco anos no ano passado.

O objetivo é garantir que os animais comprados pela empresa não tenham passado nenhum momento de suas vidas por propriedades rurais associadas à devastação da natureza. A tarefa não é trivial: no Brasil, não é incomum que os bois passem por diversas fazendas diferentes do nascimento ao abate.

“É importante entender as motivações. Por mais que o controlador da Marfrig esteja preocupado com a mudança climática, ele tem muito capital investido lá, não vai rasgar dinheiro. Ele entendeu que isso é um bom negócio”, diz Fabio Alperowitch, fundador da Fama.

Ele observa que existe uma visão clara da companhia de que as regulações climáticas estão avançando no mundo inteiro. Quem não se mexer agora terá uma barreira comercial para seus produtos – como demonstra a lei antidesmatamento da União Europeia, que se aplica também à carne bovina.

A proibição da entrada no bloco de commodities agropecuárias associadas ao desmatamento deveria entrar em vigor em 30 de dezembro deste ano, mas a data deve ser adiada  até o fim de 2025.

A Fama destaca que a pauta ambiental está no alto escalão da Marfrig, que tem entre seus conselheiros o ambientalista Roberto Waack, cofundador da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura e presidente do conselho do Instituto Arapyaú.

Perseguindo o gado

O rebanho brasileiro é estimado em 202 milhões de cabeças de gado, segundo dados da Associação Brasileira dos Exportadores de Carne Bovina (Abiec), e ocupava uma área de pastagens de 159 milhões de hectares em 2023. Equivalente à soma dos territórios do Peru e do Paraguai, essa dimensão associada à complexa cadeia pecuária torna a conciliação da produção com preservação tarefa difícil.

A Marfrig é a empresa brasileira de carnes mais bem posicionada no ranking ESG elaborado pela FAIRR, uma rede de investidores com US$ 75 trilhões de ativos sob gestão que analisa as 60 maiores empresas de capital aberto do setor ao redor do mundo. 

A companhia ocupava o quarto lugar na lista de 2023, a última divulgada, atrás apenas das norueguesas Mowi, Leroy e Grieg Seafood, todas de pescados e frutos do mar. 

Para elaborar o índice, a FAIRR considera dez fatores ligados a ESG: emissões de gases de efeito estufa; desmatamento e biodiversidade; desperdício e poluição; uso de antibióticos; condições de trabalho; bem-estar animal; segurança alimentar; uso e escassez de água; governança; e proteínas alternativas.

A Fama acredita que a Marfrig está bem posicionada para entregar, no ano que vem, a meta de rastreabilidade completa de todo o boi que compra. Segundo o relatório de sustentabilidade de 2023 da companhia, todos os fornecedores diretos são monitorados por satélite, 85% dos fornecedores indiretos na Amazônia e 71% no Cerrado para verificar se o gado comprado não vem de áreas desmatadas, de terras indígenas e de unidades de conservação.

Mas rastrear não resulta necessariamente em redução do desmatamento. Produtores impedidos de vender para quem faz esse controle não teriam problema para encontrar outros frigoríficos clientes.

Segundo Tiago Gomes, da Fama, a ideia é trabalhar com atores da cadeia que já atuam com a Marfrig e trazer outros novos, da rede de relacionamento da gestora, para criar projetos que tragam  incentivo para que o pequeno pecuarista tenha opções e alternativas de produzir sem desmatar. 

O arroto do boi

Para além do desmatamento, outro impacto da criação de gado para as mudanças climáticas é a emissão de metano, um dos gases que provocam o efeito estufa. Ela ocorre na fermentação entérica, um processo digestivo natural de animais ruminantes, como bois, ovelhas e cabras, além do manejo de resíduos na criação desses animais.

O escopo 3 costuma ser o calcanhar de Aquiles para os frigoríficos, que lidam com milhares de fornecedores.

Na Marfrig, 95% das emissões anuais da empresa estão no escopo 3, ou seja, nas atividades de sua cadeia de valor. A meta da companhia é reduzir 33% das emissões de gases de efeito estufa, incluindo metano, neste escopo até 2035, com base no ano de 2019.

O caminho tem sido trabalhar junto com a cadeia produtiva para incorporar novas tecnologias na produção. Em 2022, a companhia iniciou um projeto-piloto para adicionar à ração oferecida ao gado na fase de engorda um aditivo que ajuda a reduzir a produção de metano durante a digestão

Outra frente é a qualidade das pastagens. O manejo adequado promove o crescimento de folhas com alto teor de fibra de boa digestibilidade, diminuindo a produção de metano no rúmen.

Tese de investimentos

A tese de investimentos da gestora é a de que o consumo de carne vai aumentar no mundo e, com isso, a demanda pelos produtos da Marfrig vai crescer. 

Duas macrotendências corroboram essa tese. A primeira é o crescimento populacional. A segunda é a ascensão da classe média no mundo, principalmente na China, o que muda o padrão de consumo. 

“A China, que culturalmente comia muito porco, passa a demandar outras proteínas animais. É o mesmo movimento que vimos com café e vinho”, diz Gomes.

Para a pecuária, o aumento da oferta é limitado pelo tamanho da área disponível para pastos. A saída é aumentar a produtividade na mesma área. E também aí a Fama vê uma oportunidade para minimizar o impacto da produção no meio ambiente, com a redução de emissão de metano e a necessidade de desmatamento para abrir novas áreas de pastagens.