E até os IPOs têm o seu ‘novo normal’.
Na atual supersafra de ofertas iniciais de ações de empresas brasileiras, que nas últimas semanas deu uma engasgada com a piora do humor nos mercados, não há uma apresentação a investidores que não dedique parte do tempo a exaltar supostos aspectos ESG do negócio oferecido.
Diante do interesse crescente de investidores, sobretudo estrangeiros, por avaliar as novatas do mercado sob a ótica ESG, as estreantes e seus assessores financeiros responderam rápido.
“Para quem não tem tantos atributos a mostrar, ao menos um slide sobre o tema tem aparecido”, relata um gestor de fundos que tem acompanhado os seguidos roadshows.
O IPO da empresa que faz gestão de resíduos industriais Ambipar, em julho deste ano, foi emblemático dessa tendência. E o sucesso alcançado só turbinou ainda mais o apetite das estreantes e buscar uma roupagem sustentável para se apresentar ao mercado.
Nas primeiras reuniões com investidores, o valuation da Ambipar era um tanto mais modesto. “Chegamos a colocar uma ordem grande de compra no piso do intervalo de preço. Mas quando o mercado se deu conta de que a história tinha boa aderência com critérios ESG, teve um boom na demanda pelo papel”, diz o gestor de ações de uma grande asset.
A demanda final foi de mais de dez vezes o tamanho da oferta, de R$ 1 bilhão, uma das maiores já vistas. Como resultado, além de a ação ter sido precificada no topo da faixa indicativa de preço, o papel ainda disparou 18% na estreia. “Grande parte disso se deveu ao frenesi ESG”, completa o gestor.
Ambipar é negociada a 31 vezes o lucro e 16 vezes o ebitda projetados para 2021. Um fenômeno que todo mundo quer copiar.
Outro caso foi o da Omega, de energia renovável, que teria atraído uma boa quantidade de fundos estrangeiros com políticas ESG, acessando novos bolsos.
Ambipar e Omega são exemplares típicos de um grupo de empresas que têm uma atividade fim com apelo ambiental ou social. Ou seja, em que o produto ou serviço conversa diretamente com a pauta ESG. Obviamente, não é o caso de todas as empresas.
Outras na fila para abrir o capital e que podem ser encaixadas no mesmo grupo são a Granbio, empresa de biotecnologia para fabricar etanol a partir do bagaço da cana, o ‘brechó digital’ Enjoei, que tem o apelo de fomentar a economia circular, e a fabricante de pás eólicas Aeris.
Também nesse grupo, veio a mercado ontem a Hidrovias do Brasil, de logística fluvial, com certo apelo ambiental por consumir menos combustível e poluir menos que o transporte rodoviário e ferroviário.
Além do core business
No caso de empresas em que a atividade fim não oferece um apelo instantâneo, tem havido um esforço para ressaltar as boas práticas ESG nas três frentes, a ambiental, a social e a de governança.
Também em julho, por exemplo, a mineradora de ouro e cobre Aura, do empresário Paulo Brito, listou por aqui os BDRs da empresa, que já é negociada no Canadá.
A preocupação em fixar uma imagem de boas práticas ESG num setor bastante polêmico tanto do ponto de vista ambiental quanto do social foi evidente.
Em todo o seu material de divulgação, a empresa ressaltou o fato de praticar o que chama de ‘mineração 360’, a sua versão para uma política que considera todos os stakeholders e o meio ambiente.
No caso específico, alguns gestores afirmam que a preocupação ia além do Power Point. “É um assunto em que o próprio CEO se envolve e se preocupa, tem repertório, quer feedback…”, diz o gestor de um fundo que acompanha de perto a empresa.
Mais que a narrativa
“Nas companhias com que discutimos IPOs todo mundo diz que precisa ter uma página para falar de ESG”, diz Marcelo Millen, chefe de renda variável do investment banking do Citi. Outros bancos de investimento confirmam a mesma demanda das empresas clientes.
O problema do frenesi costuma ser a qualidade da entrega.
“As empresas querem ter a narrativa, mas não necessariamente têm dentro de casa os aspectos necessários, o ESG não permeia a cultura da casa. E o resultado é que vai ter fundo dedicado que não vai comprar a ideia”, completa Millen.
O analista de uma gestora com foco em ESG diz que tem ficado incomodado justamente com a falta de consistência entre discurso e prática das empresas que têm se apresentado.
Mauro Cunha, conselheiro independente de várias empresas e ex-presidente da Amec, vai além.
“O problema é que os mesmos erros cometidos no boom de IPOs de 2007 estão se repetindo agora”, diz. “Sempre que existe uma janela de mercado, os bancos correm para aproveitar.”
E os escritórios de advocacia, diz, já têm o kit de governança pronto para o Novo Mercado: estatuto social, formulário de referência e conselho de administração. “E quando se soma a camada ESG em cima disso, acaba sendo mais uma camada falsa”, diz Cunha.
Banqueiros de investimento argumentam que o movimento tem que começar de algum lugar, ainda que seja imperfeito neste início. Mas críticos alertam para o risco de que atender a critérios ESG se converta em mais uma caixinha a ser ticada, sem compromisso com a coerência.
O que se pode dizer é que, no mínimo, o assunto entrou na pauta e tem feito com que algumas operações sejam mais frontalmente questionadas.
Um dos casos que tem repercutido mal é o da varejista de roupas esportivas Track&Field, que pretende ser listada no Nível 2 do Novo Mercado da B3 e, ainda assim, ressuscitou a prática há muito condenada de atribuir ações preferenciais com super poderes de voto aos controladores.
“Esse tipo de estrutura até pode fazer sentido para empresas com ênfase em pessoas ou tecnologia ou em que o fundador é essencial. Mas não parece ser o caso e fere a boa governança”, diz Fabio Alperowitch, sócio-fundador da gestora Fama.
Em uma rede social, Mauro Cunha fez crítica semelhante há poucos dias.
Um gestor que esteve com a empresa diz que o sistema de franquias até conta pontos a favor, sob o critério social. “É um sistema de grande alinhamento com o franqueado, porque a Track&Field só gera margem quando o franqueado efetivamente vende o produto ao consumidor.” Mas as super PNs, diz, de fato, tiram brilho da operação.
Vacina anti green (ou social) washing
O ex-presidente da Amec defende que os próprios bancos que estruturam as ofertas deveriam colocar filtros de qualidade na escolha dessas empresas.
Não tem sido raro ver, por exemplo, bancos que dizem estar construindo padrões ESG sólidos em suas atividades disputarem o mandato para levar a mercado empresas de histórico questionável.
Marcelo Millen acha que um aperto nos critérios precisa vir de algumas frentes. Um código de autorregulação da Anbima sobre o tema poderia tornar mandatório o compromisso dos bancos em não levar a mercado empresas com roupagem ESG que não estejam de fato comprometidas com a agenda.
De outro lado, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) poderia exigir que as companhias coloquem nos prospectos das ofertas os fatores de risco relacionados à não aderência a critérios ESG. Da mesma forma, dar transparência às práticas no formulário de referência. “Assim seria possível estabelecer um parâmetro para o mercado seguir.”
Enquanto isso, diz Millen, o banco tem procurado tomar alguns cuidados e criar processos internos. Dentro da divisão de mercado de capitais, há uma equipe global que faz a avaliação da aderência das empresas candidatas a abrir o capital às práticas ESG.
“Nos pitchs, esse grupo traz o mapeamento do universo de empresas comparáveis e o que elas fazem. A contribuição que estamos dando é educacional”, diz. “Se a empresa vai seguir ou não a recomendação, é decisão deles.”
Ele admite que o curso de uma estruturação de IPO não é suficiente para que uma empresa despreparada se converta às melhores práticas. Mas diz que, no mínimo, a empresa pode entender o que já faz, comunicar isso melhor e se comprometer a evoluir com o tempo.
“O tema é novo e é preciso um aprendizado das empresas, dos bancos e dos investidores. Tem gente que vai construir como narrativa e outros como prática. Mas quero acreditar que no fim do dia existe um interesse genuíno.”