O ano era 2006 e o agricultor Francisco da Silva Elias caiu de cama doente. Sem forças para roçar o pequeno lote de cultivo de café, na cidade de Apuí, à beira da Transamazônica, viu a terra ser tomada pela embaúba, árvore nativa da região.
O problema virou solução. Com as árvores, o solo ficou mais forte e a sombra criada pelas copas melhorou a produtividade e a qualidade do grão.
O episódio serviu de inspiração para a criação do projeto Café Apuí Agroflorestal, capitaneado pelo Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam).
Atualmente, seu Francisco e sua esposa, Dona Maria das Dores, estão entre os cerca de 40 produtores familiares de café agroflorestal em Apuí — um projeto que não só vem aumentando a renda dos produtores da região, como se mostrando uma forma de conservar e restaurar a floresta num dos epicentros do desmatamento da Amazônia.
Iniciado oficialmente em 2012, e financiado principalmente com doações do Fundo Vale, o projeto recentemente ganhou o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS) e do WWF.
Agora, o Café Apuí Agroflorestal se prepara para o seu maior desafio: sair de um projeto de capital filantrópico para virar oficialmente uma empresa e andar com as próprias pernas.
A ideia é criar um mercado escalável para o primeiro café orgânico ‘made in Amazon’, aumentando a quantidade de produtores de 40 para 200 nos próximos três anos, podendo chegar a mais de 500 no longo prazo.
Para isso, o Café Apuí está em busca de investidores e já vem mantendo conversas com uma casa voltada para investimentos de impacto, diz Mariano Cenamo, diretor de novos negócios do Idesam, sem dar mais detalhes.
“O modelo de negócio é plantar agroflorestas em áreas degradadas e produzir café com renda justa para pequenos produtores”, diz Cenamo.
O café colhido é torrado, moído e embalado na própria cidade, e depois encaminhado para Manaus, de onde é redistribuído para todo o Brasil por meio de venda online. O negócio é todo comandado pela Amazônia Agroflorestal, empresa recém criada que tem o próprio Idesam como sócio.
O maior desafio agora é o de marketing, de criar mercado para o café, vendendo não só o sabor encorpado da variedade robusta — menos consumido no Brasil que o arábica — como os benefícios sociais e ambientais gerados na Amazônia.
Enquanto o investidor de impacto não chega, o Café Apuí acaba de receber uma doação de cerca de R$ 2 milhões viabilizada pela reNature, empresa de agricultura regenerativa baseada na Holanda e fundada pelo brasileiro Felipe Vilela, que tem expertise de cultivo de café regenerativo e agroflorestal nas florestas tropicais de Ruanda, na África, e no Sul de Minas.
O cheque foi assinado pela suíça LB Foundation.
Ao longo dos próximos três anos, o dinheiro vai viabilizar uma série de iniciativas de assistência técnica, aprimoramento do cultivo e refinamento na qualidade do café, que tem potencial para ser vendido como um ‘specialty coffee’, voltado a paladares mais sofisticados, e com posicionamento de preço superior.
“Queremos ainda aprimorar o design da agrofloresta para incluir subprodutos que possam diversificar a renda do agricultor, como a produção de óleos essenciais, por exemplo, que pode ser distribuída para empresas da área de cosméticos e beleza” diz Felipe Vilela, da reNature.
Café no lugar do boi
Apuí é um município de fronteira, criado a partir do maior projeto de assentamento rural já implantado pelo governo brasileiro, que pretendia fixar na região mais de 7 mil famílias de todo o país no começo da década de 1980.
Na época, o governo dava crédito para habitação e produção para ocupar a Amazônia, mas se esqueceu do essencial: os agricultores se depararam com uma condição de produção muito diferente daquela a que estavam acostumados nas suas terras natais. Muitos foram embora e os que resistiram tiveram dificuldades para encontrar culturas que fossem adequadas para produzir na Amazônia.
Sobrou a pecuária, extensiva e de baixo rendimento, que rapidamente se tornou a atividade dominante — e a principal responsável pelo desmatamento.
Joga contra Apuí também a questão logística. Isolado dos grandes centros urbanos, o município tem dificuldade tanto para receber insumos quanto para escoar sua produção. E o boi vivo tem mercado cativo: é levado em balsas e abatido em Manaus e Porto Velho.
A multiplicação da regeneração
No sistema agroflorestal, o café é consorciado com outras espécies, em geral árvores nativas da região, como andiroba, ipê e jatobá. Mais rústicas, as árvores de robusta geram um café encorpado e com mais cafeína, forte como o povo da floresta.
“As árvores ciclam melhor os nutrientes do solo, as folhas caídas adubam o café naturalmente e a sombra dá mais conforto, especialmente na época da seca, mantendo a umidade do solo e aumentando a produtividade”, diz Cenamo, do Idesam.
Uma garrafa PET com detergente e álcool é usada para controlar pestes, substituindo os pesticidas químicos usados anteriormente. E a perda média com pragas saiu de 30% para 1,8%, segundo o Idesam. A secagem dos grãos em terreiros suspensos, construídos nas próprias fazendas, foi outra medida simples que ajudou na qualidade dos grãos.
A matemática do cultivo agroflorestal é um ganha-ganha. A produtividade do café saiu de 8 sacas por hectare para até 18 sacas no modo de produção orgânica. Além disso, o café tem melhor qualidade e o preço por saca é maior para o produtor.
Com a pecuária, um produtor fatura em torno de R$ 200 por hectare. No café convencional, com oito sacas por R$ 250 cada, são R$ 2 mil por hectare. Já no sistema agroflorestal — com bônus por qualidade e pela certificação orgânica –, o preço por saca pode chegar a R$ 330, o que, multiplicado por 18, dá quase R$ 6 mil por hectare.
Na prática, a renda anual dos produtores envolvidos no projeto aumentou nada menos de 300%, segundo o Idesam.
Com tantas vantagens, o principal empecilho para o avanço é a falta de capital.
Trata-se um dinheiro investido na frente para preparar a terra, cujo aumento de produtividade só vem no futuro. “A maioria dos agricultores familiares tem baixa capacidade de investimento e muitas vezes não consegue acessar créditos rurais porque sequer possui a documentação de posse de terra”, diz Cenamo.
Para resolver o problema, o Café Apuí Agroflorestal irá financiar a aquisição de mudas, insumos e adubação técnica, na forma de um ‘pacote de fomento’ que é pago em parcelas pequenininhas ao longo de três anos, conforme o produto for gerando renda.
Além disso há a capacitação técnica.
“Há uma questão quase que cultural. O sistema agroflorestal é cultivado literalmente no meio do mato. A primeira reação de muitos produtores quando veem a terra assim no vizinho é dizer: ‘esse cara é preguiçoso, não está sequer limpando a lavoura'”, diz Cenamo.
Eles têm muito a aprender com seu Francisco.
(Créditos da foto: Michel Mello/Secom)