Dentro e fora da assembleia legislativa: Assédio é questão de poder

Um senso ilegítimo de direito masculino está na raiz de muitas das dinâmicas de desigualdade de gênero, escreve Itali Pedroni Collini

Dentro e fora da assembleia legislativa: Assédio é questão de poder
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Em 2014, estava entrevistando uma profissional do mercado financeiro para minha pesquisa sobre a diversidade nessa indústria e ela me contou a seguinte passagem:

“Em um happy hour, um cliente da minha empresa se aproximou na hora que eu estava no bar. Ele chegou encostando o corpo em mim e colocou a mão no balcão, me ‘segurando’. Disse que eu não sairia de lá sem dar um beijo nele. Eu falei: ‘Você está louco? Não, não tem nada a ver’. Dei uma desculpa: ‘Você é cliente.” E ele: “Não tem nada a ver se eu sou cliente ou não'”

Corta para 2020, em que acabo de ver o vídeo da deputada Isa Penna (PSOL), que passou por uma situação muito semelhante dentro da Assembleia Legislativa de São Paulo ontem.

O deputado Fernando Cury se aproxima por trás da deputada, colocando a mão no seus seios e o encostando na parte de trás do seu corpo. A deputada afasta com a mão, por mais de uma vez.

Uma coisa une as duas situações: o sentimento “eu posso” ou “eu tenho direito”, que é socializado e internalizado nos homens a partir da permissividade da nossa sociedade.

Nos estudos de gênero é recorrente o uso do termo male entitlement para descrever esta característica da misoginia que prioriza o que os homens supostamente merecem e, consequentemente, o que as mulheres são obrigadas a dar a eles. Um senso ilegítimo de direito masculino está na raiz de muitas das dinâmicas de desigualdade de gênero.

Por isso, o motivo subjacente do assédio não são as diferenças biológicas de sexo (hormônios masculinos ou “conexões cerebrais”), mas sim a necessidade de encontrar e manter o poder.

No mundo ocidental, muitos homens aprendem desde o nascimento que têm um direito inerente ao poder. Que os meninos são durões, fortes e agressivos e têm direito à raiva, que as meninas são gentis, bonitas e dóceis. Que o trabalho emocional e doméstico são papéis das mulheres e os homens são violentos, protetores, provedores e dominadores.

Mesmo nas famílias mais progressistas, os meninos aprendem conceitos assim nos livros que lêem, nos filmes que assistem e na mídia constantemente alimentando seu subconsciente.

Não é como se estivesse escrito em um papel ou numa lei que os homens tem direito de encostar nos seios, coxas ou bundas de suas colegas, mas é o que a sociedade permite que eles façam sem sofrer consequência nenhuma para suas posições de poder ou acesso a privilégios.

Gerar consequências negativas palpáveis para os homens que assediam é pré requisito para começarmos a mudar este quadro. Por isto, espero que o mandato do deputado que assediou Isa Pena seja cassado. Só assim o Fernando Cury, indivíduo, vai entender qual é o limite estabelecido na sociedade sobre o que ele pode ou não fazer.

No entanto, para a sociedade se tornar melhor para todos, não será suficiente somente punir o indivíduo enquanto o imaginário coletivo sobre o que homens podem fazer se mantém praticamente intacto.

É necessário um trabalho mais profundo e de longo prazo se nós quisermos tornar as esferas de poder, seja pública ou privada, mais inclusivas para mulheres.

Não consigo parar de pensar em como a mudança que precisamos é lenta e difícil de se fazer, precisamos de muitos esforços, iniciativas e alianças.

*Itali Pedroni Collini é economista pela USP e diretora de operações no Brasil da aceleradora 500 StartupsTEDx speaker, tem experiência no mercado financeiro, consultoria e investimentos de impacto social. A opinião expressa no artigo é pessoal e não reflete uma posição da 500 Startups.