O mercado brasileiro descobriu o ESG em 2020. Empresas e investidores encamparam o tema rápida e alegremente — e com alarde.
A barbárie no Carrefour, com o assassinato de João Alberto Silveira Freitas por dois seguranças terceirizados, chega, neste fim de ano, como um tapa na cara.
Afinal, nada do que foi dito é para valer?
Se é verdade que tudo se resume a muito marketing e pouco fundamento, o reverso da moeda é que todos os compromissos assumidos por empresas, bancos e gestoras na onda ESG automaticamente criam um passivo. Uma vez que existam promessas, é possível cobrar coerência e, principalmente, ação.
Se não serve de consolo, o efeito disso também não pode ser desprezado. E o que o episódio deixa claro é que integração ESG não se faz com discurso. É uma transformação cultural, que, no caso brasileiro, está apenas no começo.
Neste ano tão fora da curva, com a pandemia do novo coronavírus e o movimento ‘black lives matter’, finalmente o ‘S’ do ESG começou a ser compreendido no mundo corporativo e dos investimentos.
Até então, era mais comum que ações de filantropia praticadas pelas empresas fossem enquadradas dentro do ‘S’ e consideradas suficientes para ‘ticar’ essa caixinha.
As empresas se tornaram vocais sobre a necessidade de políticas e metas de inclusão em todos os níveis hierárquicos. Mas falar é fácil.
Em pleno 2020, não é mais admissível que empresas tentem se isentar de responsabilidade sobre atos cometidos por funcionários terceirizados.
A sociedade tolera cada vez menos esse tipo de justificativa — cujo resultado é mostrado em cores vivas e levado às últimas consequências em imagens de um cliente sendo cruelmente espancado e asfixiado até a morte.
Empresas conscientes do seu papel social deveriam se preocupar justamente em saber em que condições determinado serviço está sendo executado em seu nome.
Códigos de conduta bonitinhos podem embelezar relatórios de sustentabilidade, mas não servem para mudar algo que é estrutural na sociedade e que, por consequência, permeia as relações dentro das empresas.
Algo social e culturalmente arraigado como o racismo só pode ser revertido por meio de um trabalho profundo. Que começa no recrutamento, mas avança por diretrizes claras, educação constante e uma política de tolerância zero com quem não se adequa aos princípios defendidos pela empresa, ou seja, com o desligamento do funcionário ou prestador de serviço.
O CEO de uma grande empresa brasileira contou em conversa recente com o Reset que a companhia está fazendo uma grande pesquisa para identificar as práticas ambientais e sociais de seus 30 mil fornecedores.
O próximo passo será começar um trabalho educativo para informar e treinar os fornecedores de serviços e produtos sobre as práticas demandadas pela companhia de seus contratados. A meta é chegar no ponto em que os critérios serão excludentes na contratação. Soa como uma boa política, ainda que o desafio real venha na execução.
O Carrefour já vem pressionando os frigoríficos brasileiros para tentar assegurar que a carne que vende em suas gôndolas não deixaram um rastro de destruição na cadeia de fornecimento.
O mesmo precisa ser feito com fornecedores de outros produtos e serviços. E não só no Carrefour.
O silêncio dos investidores
No mesmo dia da tragédia, as ações do Carrefour Brasil, listadas no Novo Mercado da B3, o mais rigoroso em termos de governança, fecharam em alta.
O movimento sugeriu que os investidores deram de ombros para o que aconteceu em Porto Alegre — e, para além do ponto de vista moral, não estabeleceram qualquer correlação entre o assassinato e o desempenho do negócio.
O ESG acabou antes de começar?
Mudanças verdadeiras vêm no médio e longo prazos, precisam ser construídas, e certamente não se medem pelo desempenho de uma dia da ação. Infelizmente, é frustrante constatar que algumas questões, como a violência racial ou a crise climática, têm uma urgência que não combina com esse timing.
O fato é que o ESG ainda é um pequeno universo, mesmo que em expansão.
Em primeiro lugar, se as empresas ainda titubeiam a respeito de seu papel social, os investidores estão ainda mais distantes de compreender que suas decisões de investimento ajudam a moldar a vida real e que as escolhas podem se alinhar a seus valores. ‘O que meu dinheiro nutre?’ não é o tipo de reflexão a que estamos acostumados.
Em segundo lugar, de um ponto de vista pragmático, a despeito de todo o alarde pró-ESG, ainda são poucas as casas de gestão de recursos ou investidores institucionais hoje capacitados para uma análise ESG profunda, ou uma análise holística sobre todas as dimensões dos negócios das empresas, presentes e futuras.
Para investidores comprometidos com a integração ESG em suas decisões de investimento, existem algumas abordagens possíveis diante da tragédia, a depender da filosofia da casa de gestão.
Uma delas é ‘negativar’ o Carrefour, ou seja, vender suas ações e deixá-lo numa lista de exclusão até que a empresa consiga mostrar que mudou.
Outra abordagem possível é o engajamento com a companhia, em que o acionista mantém as ações, podendo até reduzir a posição, mas inicia um trabalho de conversa para identificar falhas e pressionar por mudanças.
Numa abordagem convencional, um gestor de recursos avaliaria o risco de responsabilização jurídica para a empresa, se caberia ou não uma indenização, qual o seu tamanho e se ela seria capaz de impactar o caixa da empresa. Contas feitas, se achasse que o risco não é material, vida que segue.
Mas o maior impacto de um episódio como esse sobre a empresa vai muito além da responsabilidade jurídica.
A depredação de lojas, como aconteceu na sexta-feira em São Paulo, mas principalmente a perda potencial de clientes que passem a boicotar o supermercado, têm potencial para machucar muito mais os números da varejista.
E, com o poder de disseminação das redes sociais, esse dano pode se estender a outros países em que a rede opera, inclusive na França, onde o caso ganhou repercussão imediata.
Há diversos tipos de aplicação de filtro ESG, dos mais estritos aos mais suaves, mas todos partem do pressuposto de que olhar para fatores ambientais, sociais e de governança é uma forma de mitigar riscos.
Mesmo que não exista um impacto imediato, a falta de consistência nesta e em outras práticas cria um risco latente para o negócio e tem potencial de destruir valor no tempo.
O episódio grotesco no Carrefour será colocado na conta, se não por virtude, na marra. E a magnitude do impacto vai depender do tamanho da reação da sociedade e da empresa à barbárie.